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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

AS TROVAS DO BANDARRA



AS TROVAS DO BANDARRA
Passou-se até hoje inteiramente em claro sobre o facto de as famosas trovas do sapateiro Bandarra terem sido escritas durante um movimento de resistência popular. Pode haver relação entre a obra e a situação em que foi escrita: pode não a haver. Mas o problema não pode deixar de ser examinado.
A notícia da revolta de Trancoso é dada numa curiosa obra que nunca foi publicada, os Ditos Portugueses Dignos de Memória, em que um paciente compilador foi registando frases, episódios e incidentes pitorescos de que no seu tempo se falava, e que recebeu a redacção final, com vista a uma publicação que aliás não se verificou, entre os anos de 1575 e 1578. 0 informe é este :
Fazendo el-rei mercê ao infante D Fernando seu irmão da vila de Trancoso, mandando ele tomar posse dela, não quiseram os moradores da vila e amotinaram-se. E mandando à Corte um Lopo Cardoso, que era dos principais da terra, disse ele a el-rei como os moradores de Trancoso estavam determinados de se aventurar antes a morrer todos que a deixar de ser vassalos de Sua Alteza para ser do infante; e el-rei, que naturalmente era benigno, disse a Lopo Cardoso que, todas as vezes que ele cavalgasse, o acompanhasse para que pudesse dizer ao infante que lhe falava nisso, até ver se o podia contentar com outra cousa. Andando el-rei nestas perlongas, e o infante não querendo aceitar outra mercê em desconto da que lhe era feita, durou isto seis ou sete anos os quais todos o Lopo Cardoso andou na Corte, até que o infante faleceu. E tanto que o viu morto, partiu caminho de Trancoso e, chegando junto à vila, disse a uns lavradores que andavam lavrando que não trabalhassem, que já eram livres; e os lavradores deixando todos os arados lançaram a correr caminho da vila e, chegando à praça; ajuntaram-se com outros homens da terra e, dando na cadeia, soltaram todos os presos que havia nela. Vindo isto as orelhas de el-rei, mandou trazer preso ao Lopo Cardoso e, quando soube que era chegado, disse que o havia de castigar rijo, porque folgara tanto com a morte do infante seu irmão. E Fernão d'Álvares de Andrade, seu escrivão de Fazenda e muito seu privado, ouvindo-lhe isto disse a el-rei :
- Senhor, andando aquele homem sete anos fora de sua casa por amor de libertar sua Pátria, e vendo-a livre da maneira que Deus foi servido, lhe estranha Vossa Alteza fazer o que fez? A mim não somente me não parece grande culpa, mas antes me espanto como não endoudeceu!
Há na notícia algumas inexactidões porque Trancoso foi dada por D. João III ao Infante D. Fernando em 1530 e o infante morreu em Novembro de 1534. Não seriam portanto seis ou sete anos. mas quatro ou cinco.
Ora, sabe-se pelo processo da Inquisição que o sapateiro de Trancoso, que foi preso em 1541, já em 1535 tinha escrito as suas trovas e já nessa época elas estavam a ser avidamente lidas pelos cristãos-novos. A época da redacção coincide assim com a da revolta popular.
0 conjunto das trovas forma um auto pastoril muito ingénuo, que começa por um prólogo em que o autor faz o elogio da sua arte de sapateiro e da perícia com que executa todos os trabalhos pertencentes ao seu ofício. É o orgulho do mesteiral que fala. Mas logo a seguir refere-se uma ameaça que paira sobre todos:


Vejo, veja, direi, vejo,
vejo ou estou sonhando?
semente do rei Fernando
fazer um grande despejo!
E seguir com grão desejo
e deixar a sua vinha
e dizer: esta casa é
minha, agora que me cá vejo!


0 infante D. Fernando era de facto neto de Fernando, o Católico. Grande despejo é, grande atrevimento, grande ousadia, e neste caso o atrevimento consistia em o infante dizer que a casa era sua, que Trancoso lhe pertencia. Mas todos os pastores do vale tinham uma grande confiança no pastor-mor, que é visivelmente o rei de Portugal, e o pastor-mor ordena uma dança em que todos tomam parte. Vários episódios, cuja notícia chegara a Trancoso, intercalam a folia pastoril: projectos de conquistas no Norte de África, ofertas de dinheiro pelos judeus ao pastor-mor (alusão evidente às tentativas dos cristãos-novos para evitarem, com o seu dinheiro, o estabelecimento da Inquisição, luta que, como se sabe, se desenrolou de 1531 a 1536). E tudo isso surge enredado em confusas citações da Bíblia, reminiscências de poesia popular tradicional, influências espanholas (entre elas alusões a um Encoberto, mito ligado à revolta das comunidades de 1520-22), profecias que andavam de boca em boca, restos de lendas do ciclo arturiano, profundamente infiltradas na cultura popular, críticas sociais que já então eram lugares-comuns à má justiça e à corrupção, etc.. 0 sentimento que se exala de todo esse confuso e incoerente amálgama é o de uma inerme esperança do regresso a um tempo de liberdade e justiça do qual os homens foram desterrados, mas que um dia há-de voltar.
Ora tudo isto pode estar ligado com a rebelião de Trancoso durante os anos de 1530-1534. Para os lavradores e mesteirais da vila beirã não estava só em causa o serem vassalos de um rei ou vassalos de um infante, irmão do rei. Os povos sabiam perfeitamente a diferença entre essas duas situações. Os almoxarifes do rei podiam enriquecer com os presentes dos contribuintes (há várias queixas desse género); mas os vizinhos podiam sempre, presenteando-os, evitar que eles se mostrassem demasiado severos na arrecadação dos tributos. Não acontecia o mesmo com os grandes senhores. Esses tinham de manter na corte uma vida faustosa, que o decurso dos tempos tornava cada vez mais cara, e tinham de arrancar os meios com que viviam das terras de que eram donatários. Há muitos documentos sobre rapacidades senhoriais, contra as quais os lavradores levantavam em vão o seu clamor. Não muito tempo antes, em 1520, uma grande revolta social ensanguentara a Espanha, e é muito significativo que o Encoberto que aparece nas trovas do Bandarra tenha surgido pela primeira vez durante aquela revolta. Era por tudo isso que os moradores de Trancoso (e um deles era o sapateiro Gonçalo Anes Bandarra) faziam saber ao rei que preferiam perder todos a vida a ser vassalos do infante D. Fernando.
Foi portanto numa vila empenhada numa luta anti-senhorial que nasceram as trovas que o tempo havia de tornar tão célebres A sua mais antiga leitura foi provavelmente uma leitura puramente local; a libertação em que se pensava era a de Trancoso, o salvador em quem se confiava era D. João III.
(José Hermano Saraiva, Outras Maneiras de Ver).

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