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terça-feira, 25 de setembro de 2012

Sinto-me insultada; eu cigarra me assumo





Por Noémia Pinto
Sinto-me insultada.
E não devia sentir-me assim.
Tentaram ser pedagogos e chamaram-me cigarra. Com toda a razão. Talvez tenha sido isso que me ofendeu mais. Chamarem-me preguiçosa, mandriona, gastadora, irreflectida, pouco previdente e tudo o mais implícito no termo e terem razão para o fazer.
Neste momento sou, como infelizmente o são milhares de Portugueses, uma cigarra. Vivo da ajuda de terceiros. Não sou capaz de prover ao meu sustento e ao sustento dos meus dependentes, a saber, duas crianças, dois cães e quatro gatos. Não soube poupar os ganhos exorbitantes (!!!) que tive até há algum tempo atrás e agora estou na penúria, a viver da caridade do Estado, ou seja, a viver da caridade de todos os meus compatriotas.
Mas deixem-me contar a história desta cigarra.
Comecei a trabalhar com 17 anos de idade. Como operária numa fábrica. Tinha reprovado na escola e, depois de completar o 9º ano de escolaridade, a minha mãe pôs-me a trabalhar. Já aí se notava a minha «costela» de cigarra. Eu não queria ser operária. Não queria trabalhar. E a minha mãe, formiga muito trabalhadora, obrigou-me. O Director-Geral da fábrica, também ele um homem de trabalho, uma grandessíssima formiga, disse à minha mãe que eu não queria trabalhar e, por isso, ia pôr-me na linha de produção, apesar de os meus testes psicotécnicos terem sido os melhores de todos os candidatos.
E lá comecei eu, mas como boa cigarra poliglota que sou, evidenciei-me pelos conhecimentos de Inglês. Vá-se lá saber como é que num departamento de produção se repara que uma formiga fala línguas estrangeiras… Fui observada frequentemente e prolongadamente e o novo Director-Geral achou que eu era mesmo o insecto perfeito para ser sua tradutora/ secretária. E esta formiga lá saiu do carreiro…
Um dia, o Director-Geral deixou de precisar de traduções e comecei a trabalhar no sector de controlo de qualidade da fábrica, sob a asa protectora de uma engenheira química que apreciava o meu esforço formigal.
Um dia, a engenheira química foi embora porque não davam o devido valor ao controlo de qualidade e fiquei sozinha. Pediram-me que continuasse o trabalho e lá continuei. Até que o controlo de qualidade deixou mesmo de se fazer. Aí, comecei a trabalhar dois dias no sector de exportação, dois dias na contabilidade e um dia no sector comercial.
Um dia, começaram a pagar os salários com atraso e noutro dia pagaram ainda com mais atraso.
Aí, fui eu que mudei de emprego. Procurei e encontrei lugar numa empresa de acessórios para automóveis, localizada numa afamada rua de prostituição portuense.
Trabalhei aí durante três meses.
Um dia, fartei-me de ter patrões que não me deixavam ouvir rádio, a quem eu tinha que pedir papel higiénico para ir à casa de banho…
E mudei de emprego. Comecei por ser secretária. Gostavam de mim, sabia falar, era trabalhadora, uma autêntica formiga. Passei a ser «assistant merchandiser», nome pomposo para indicar que trabalhava muito, com horários de entrada, mas sem horários de saída, prestando assistência aos «meus» clientes e fabricantes. Sempre sob o olhar protector e orgulhoso do meu chefe e amigo, que se revia nas minhas atitudes e no meu empenho.
Um dia, o meu querido chefe, quase um irmão mais velho, cansou-se de trabalhar para quem não o apreciava e «bateu com a porta».
Passei a «senior merchandiser», nome pomposo para indicar que trabalhava como uma mula, sem horários de entrada nem de saída, fazendo sozinha o trabalho de quase duas pessoas. Não me esqueço dos comentários do patrão, meio Inglês, meio Escocês, sempre que eu me queixava que trabalhava muito e ele não pagava horas extraordinárias: «If you have to work late, it’s because you don’t know how to manage your time». Claro, eu não sabia gerir, mesmo que ao sair da porta chegasse um fax urgente e eu tivesse que voltar atrás para lidar com o assunto. Mesmo que, em época de exames da faculdade, quando eu tirava um dia de férias para estudar, me telefonassem várias vezes ao dia com perguntas frequentemente pouco urgentes e, até, bastante estúpidas.
Quando entrei na faculdade negociei um acordo com o patrão. Precisava de faltar uma parte do dia para assistir às aulas. Ele aceitou. Até me ofereceu uma sanduicheira de prenda de Natal, para eu ter no escritório e assim não perder tempo a comer fora… Ele pagava-me metade do salário e eu trabalhava das 14 às 20. Em vez de oito horas, trabalhava seis e ganhava metade do salário. Excelente negócio, mas não para mim… Claro que a minha ética profissional nunca me deixava ir embora com assuntos importantes por resolver, por isso saía sempre tarde.
Um dia, cansei-me de tanto trabalho e decidi que ia mandar tudo às urtigas e ia dedicar-me a terminar a minha licenciatura a tempo inteiro. Trabalhava apenas nas férias, numa famosa empresa de sondagens.
Fiz dois anos da licenciatura e recomecei a trabalhar. Desta vez, no SAC (Serviço de Apoio a Clientes) de uma operadora móvel. Assistia a aulas das 8h30 às 16h30 e trabalhava das 17h às 23h. Fazia trabalhos, exames escritos e orais, mais trabalhos e nunca deixei cadeiras atrasadas.
Nunca passei por favor. Fiz uma licenciatura legítima em cinco anos (quatro de teóricas mais um de estágio). Deixei de trabalhar no SAC e fui fazer o estágio, esperançosa numa nova vida.
Foi então que passei a ser cigarra. Uma vez por ano tornei-me mandriona, calaceira, preguiçosa, parasita, inútil.
Tenho conseguido sempre trabalhar, alternando entre a formiguice e a cigarrice. Neste momento, sinto que sou mesmo cigarra. Não porque não queira trabalhar, mas porque não me deixam. Pessoas como o senhor miguel macedo (propositadamente escrito com minúsculas) não me deixam trabalhar. Nunca ninguém me pagou casa, nunca ninguém me ofereceu licenciaturas, nunca ninguém me deu cargos.
Talvez por isso sempre tive muito orgulho de toda a minha vida, de todo o meu percurso, de tudo o que aprendi com toda a gente.
No dia 23 de Setembro de 2012 tive, pela primeira vez, vergonha de ser quem sou. Senti-me ofendida, magoada, ferida no mais íntimo de mim.
Nunca me senti tão insultada. Eu, Noémia, cigarra me assumo.

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