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domingo, 14 de dezembro de 2014

Nos anos 30, em Évora e em Portugal


Nos anos 30, em Évora e em Portugal




A ESCOLA de São Mamede, onde andei há mais de 70 anos, era mal iluminada, muito fria e húmida no Inverno. Só tinha rapazes, alguns deles descalços. Entre estes havia os que traziam um pedaço de cortiça para não porem os pés no chão gelado. Nesse tempo as escolas eram separadas; rapazes de um lado, raparigas de outro. Nada de misturas. O regime era demasiado conservador e repressivo, seguidor de uma igreja retrógrada. Nas paredes, além dos retratos de Salazar, o Presidente do Conselho, de Carmona, o Presidente da República, e do crucifixo, havia uma série de quadros demonstrativos dos progressos trazidos à Pátria, pelo recém criado Estado Novo, todos eles intitulados “A Lição de Salazar”.

Reguadas, puxões de orelhas, ponteiradas na cabeça e outros “mimos”, eram o “pão-nosso-de-cada-dia” aplicados por muitos professores. Socialmente bem aceites, castigos corporais deste tipo eram, no geral, tidos por muito eficazes por pais e encarregados de educação.
Na aula o que eu mais gostava era fazer redacções, ou seja, as composições como, mais tarde, diziam os meus filhos. Os temas eram variados, focados, por exemplo, nas árvores, nos cereais, nas hortaliças, nos animais domésticos ou noutros com utilidade para o homem, como os cavalos ou as abelhas. Mas as da minha preferência eram as da vaca, do porco, e de outros do género. Invariavelmente, começavam assim: “A vaca é um animal muito útil ao homem. Dá-nos a carne e o leite para a nossa alimentação e a pele para fazer botas e sapatos…”. A redacção do porco seguia o mesmo formato acrescido das referências aos paios, chouriços, linguiças e farinheiras. Na parte restante da folha do caderno seguia-se o desenho colorido a lápis, com o animal em primeiro plano, em baixo, à esquerda, num cenário em que havia sempre ervas, uma árvore, uma casa do tipo monte alentejano, com chaminé e deitar fumo, e o sol a raiar, ao cimo, do lado direito.
Nos recreios era a descompressão. Corria-se, gritava-se, comia-se o que se pudesse trazer de casa e jogava-se à bola, com bolas feitas de trapos e meias velhas, ao eixo, ao pião, ao berlinde, ao botão e a outros jogos que a tradição ensinava. Os que tinham alguns tostões para comprar os “rebuçados da colecção” trocavam os cromos que neles vinham enrolados e, não raras vezes, peganhosos de melaço, os quais se destinavam, como os de hoje, a serem colados numa caderneta. Mas enquanto que os cromos de hoje são autocolantes, para colar os desse tempo, havia que fazer a cola.
Comprava-se, então, na drogaria, a chamada goma-arábica, uma resina de acácia norte-africana de uso generalizado. Na escola, nos escritórios, no comércio, em casa, era a cola que então se usava. Num recipiente tido por bom para o efeito, normalmente um frasco de boca larga, colocavam-se umas tantas pedras da dita resina e, por cima delas, uma porção adequada de água. Se se deitasse pouca água, as pedras não “derretiam” completamente e se se deitasse água a mais, o líquido ficava sem força, não colava. Certo, certo, era obter um líquido espesso, transparente que, ao secar, colasse bem.

Eu também fiz uma dessas colecções e os cromos eram os retratos dos futebolistas da época. Cada página da caderneta era preenchida com os jogadores de um clube e havia tantas páginas quantos os clubes merecedores dessa distinção. Os rebuçados com os ditos cromos vinham, às centenas, em caixas de lata, e entre eles havia um, apenas um, a que a malta chamava o “difícil”, pois que sem ele não se podia dar por completa a caderneta, com a qual se recebia a tão almejada “bola de caoutchouc”. Na caderneta que não consegui completar, o difícil era o 70, do “Carcavelinhos Football Club”, e a bola, “de verdade”, como aquelas que rolavam nos campos do Lusitano e do Juventude, nunca a vi.
Nesses anos, a escolaridade obrigatória era apenas a 3.ª classe (o actual 3º ano). Só em 1956, se tornaram obrigatórios os quatro anos de escolaridade, mas apenas para os rapazes. A 4ª classe obrigatória para as raparigas só foi decretada em 1960. O Estado Novo de Salazar só precisava que as portuguesas fossem “boas esposas”, “boas mães” e “boas donas de casa”, de preferência devotas e tementes a Deus. Não se falava de Ensino Básico, falava-se de Escola Primária e não se dizia, como hoje, 1º, 2º, 3º e 4º anos, dizia-se 1ª, 2ª, 3ª e 4ª classes. Havia exame no final da 3ª classe e com essa habilitação podia-se ser carteiro, funcionário público, caixeiro, ou qualquer outra profissão para a qual fosse preciso saber ler, contar e fazer as quatro operações da aritmética. Os que quisessem e pudessem completavam a 4ª classe, o que permitia aos mais privilegiados prosseguir nos estudos, entrando directamente nas Escolas Comerciais ou nas Industriais ou, após exame de admissão, entrar nos Liceus.
Quando, já homem feito, concluído o Liceu e parte dos estudos na Universidade, tive de tirar a carta de condução, disse-me o instrutor que não perdesse tempo na obtenção das minhas habilitações literárias a apresentar para efeitos de exame. «Vá ali à repartição do distrito escolar e peça o diploma da 3ª classe que o amanuense passa-lho na hora e é muito mais barato».


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