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sexta-feira, 1 de maio de 2015

Cambedo documentario completo



Da Guerra Civil na Galiza
À Batalha do Cambedo da Raia

Ao raiar do dia 20 de Dezembro de 1946, dez anos e meio depois da sublevação militar fascista contra a República espanhola, a aldeia fronteiriça de Cambedo da Raia, no concelho de Chaves, despertou ao som de tiros e rajadas de metralhadora. Durante a noite, a aldeia tinha sido cercada por um enorme aparato de forças da GNR e da PIDE, inseridas numa operação que decorria em simultâneo noutras cinco aldeias raianas vizinhas e contava com um dispositivo de centenas de elementos da Guardia Civil do outro lado da fronteira. Tinham por objectivo capturar guerrilheiros anti-franquistas que encontravam ali solidariedade com a sua luta, apoio e abrigo. Três guerrilheiros sitiados resistiram dois dias ao cerco. Um foi morto, outro matou-se e outro foi preso. Várias casas foram destruídas por granadas de morteiro. Dezenas de habitantes foram presos, quinze dos quais condenados a penas de prisão. Na origem remota destes factos está a diferença de atitudes da população fronteiriça portuguesa e do regime salazarista perante a Guerra Civil espanhola.
No deflagrar da Guerra Civil espanhola, em Julho de 1936, a resistência à sublevação militar na Galiza foi levada a cabo essencialmente pelos civis das várias correntes políticas apoiantes da República. A Frente Popular, uma coligação eleitoral que aglutinava a esquerda espanhola, tinha vencido em três das quatro províncias galegas as eleições gerais de Fevereiro anterior. No dia seguinte ao pronunciamento militar, os governadores civis das várias províncias, os eleitos para os cargos autárquicos, os partidos republicanos e os sindicatos convocaram uma greve geral a que se seguiu o levantamento de barricadas nas principais localidades. Os republicanos, praticamente desarmados, pouco puderam fazer contra os militares sublevados, a quem fora dada a ordem expressa de extremar a violência desde o primeiro momento. Em poucos dias, com o apoio dos civis falangistas, os militares controlaram todo o território galego e iniciaram uma campanha repressiva de que resultariam dois mil e quinhentos fuzilados ou “passeados” 1 nos seis meses seguintes.
Na Galiza, tal como ocorreu nos outros territórios onde o golpe fascista teve êxito, Castilha-Leão, Navarra, Aragão, Maiorca e na província de Sevilha, o facto de ter participado na greve geral revolucionária de Outubro 2 de 1934, ter ocupado cargos políticos na sequência da vitória eleitoral da Frente Popular ou ter resistido à sublevação militar, foram atributos suficientes para a condenação à morte de milhares de republicanos em conselhos de guerra ou ao seu fuzilamento puro e simples nos famosos “paseos” 3.
O Monte ou a Morte
Nos dias e meses seguintes ao “alzamiento”, milhares de galegos fugiram para os montes. Para muitos republicanos, anti-fascistas e anarquistas era a primeira etapa do caminho para atingir o País Basco, Andaluzia, Valência ou Catalunha, onde o golpe militar fascista fracassara; para outros, o ponto de partida para o exílio na Europa ou na América do Sul. A estes somaram-se aqueles que fugiam da brutal repressão e se agruparam primeiro para sobreviver e depois para passar ao contra-ataque guerrilheiro; e, com o prolongar da guerra, os montes da geografia galega acolheriam também os jovens refractários ao recrutamento massivo imposto pelas autoridades franquistas.
A raia seca galaico-transmontana, da Serra do Larouco a Vinhais, pela sua permeabilidade natural, potenciada pelas relações dos que nela viveram desde o tempo em que não havia fronteiras, foi a principal “saída de emergência” que deu passagem e abrigo 4 aos “fuxidos” nas várias situações. Milhares de galegos e leoneses esquivaram o controlo da fronteira, redobrado pelas autoridades portuguesas, a caminho do Porto e de Lisboa, trampolins para destinos mais seguros. Contavam ali com os “laços de uma rede social que se estende além dos limites politicamente convencionados de cada país, com uma história longa no tempo, que os torna activáveis em momentos bem determinados de necessidade imperiosa.” 5
Aqueles que tinham menos meios de vida, sobretudo os originários das povoações galegas fronteiriças, enquanto durou a guerra civil, refugiaram-se nas aldeias do norte de Trás-os-Montes e sobreviveram trabalhando nas casas de lavoura, no contrabando e, mais tarde, na extracção de volfrâmio.
A maré repressiva generalizada prolongou-se pelos quase três anos de conflito e manteve-se depois de terminada a guerra civil, com variações de intensidade em função dos desenvolvimentos da Segunda Guerra Mundial. Um pouco por todo o território espanhol, organizada em “partidas” 6, a guerrilha representava um meio de defesa contra a repressão, para muitos, a forma de sobreviver a um fuzilamento garantido.
As guerrilhas na Galiza e em Leão
A pouco mais de cem quilómetros a norte da fronteira de Chaves, nos montes Casaio, encontrava-se o centro onde, terminada a guerra civil, convergiram e se relacionaram as “partidas” de guerrilheiros dispersas pelos montes galegos e leoneses. “Casaio era um refúgio seguro onde as forças repressivas quase não se atreviam a penetrar”, refere Secundino Serrano, historiador da guerrilha anti-franquista, que considera a concentração nestes montes “um salto qualitativo importante ao afastarem-se dos seus povoados respectivos, com o que supunha de tranquilidade para os familiares e, simultaneamente, o nascimento de pequenos núcleos armados que tinham que governar-se por sua conta” 7. Foi nesta nova situação que se estabeleceu a primeira organização guerrilheira da Espanha do pós-guerra e seria nestes montes onde, anos mais tarde, receberam formação os membros do grupo que viria a ser protagonista no Cambedo.
Na primavera de 1942, na serra vizinha de La Cabrera, no local de Ferradillo, vinte e quatro guerrilheiros delegados, representando todas as tendências do anti-franquismo, constituíam em congresso a Federación de Guerrillas de León-Galiza, dotando a guerrilha de estatutos; princípios, dirigidos para uma nova direcção da luta, canalizando-a politica e militarmente para aproveitar a conjuntura internacional existente e reforçar o anti-franquismo; e directrizes básicas, em que se destacavam a proibição do proselitismo na organização, que era expressamente pluralista, respeito mútuo entre os combatentes baseado na democracia interna e busca incansável de apoio da população. A explicação para o nascimento desta entidade guerrilheira unitária, segundo Secundino Serrano, radicava no facto dos “guerrilheiros galaico-leoneses estarem desligados dos seus respectivos partidos e sindicatos, tanto do exílio como do interior”.

A organização adoptada, dando especial importância à estruturação das redes de apoio e às ligações, serviria de modelo às organizações guerrilheiras de toda a Espanha. Não clarificava o objectivo final da guerrilha, uma vez que toda a sua estratégia passava pela intervenção dos aliados para derrubar Franco, mas facilitava a sobrevivência dos guerrilheiros. Neste Congresso participaram guerrilheiros que se tornaram legendários, como Marcelino Villanueva “Gafas”, Enrique Oviedo Blanco “Chapa”, Marcelino de la Parra Casas “Parra” e Manuel Girón Bazán “Girón”, cuja passagem pelas aldeias raianas portuguesas foi referenciada nos testemunhos recolhidos por vários autores.
Pela primeira vez na História uma cidade foi alvo de um bombardeamento aéreo consecutivo, até ficar praticamente arrasada. Durante a 2ª Guerra Mundial esta seria a prática corrente das aviações alemã, italiana e aliadas
Pela primeira vez na História uma cidade foi alvo de um bombardeamento aéreo consecutivo, até ficar praticamente arrasada. Durante a 2ª Guerra Mundial esta seria a prática corrente das aviações alemã, italiana e aliadas
Nos anos seguintes, a guerrilha galaico-leonesa será marcada pela irrupção do PCE, que adoptara o incremento da guerrilha como estratégia para o derrube de Franco. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a derrota militar dos fascistas tinha convertido a Espanha franquista num anacronismo. A queda do ditador era vista como o corolário lógico da guerra, que tinha tido na Guerra Civil espanhola o seu prólogo e fora o laboratório dos exércitos alemão e italiano. Contudo, as potências ocidentais vitoriosas ficar-se-iam por condenações da ditadura espanhola e com a declaração de intenções de não intervir nos assuntos internos de Espanha.
A federação guerrilheira manteve-se em expansão, apesar de se acentuarem as diferenças tácticas e organizativas dos socialistas e anarquistas com os comunistas. Foi nesta fase que foram enquadrados dois dos protagonistas dos acontecimentos do Cambedo: Demétrio Garcia Alvarez “Pedro”, que aderiu à guerrilha em 1945 e, no início do ano seguinte, já no comando de uma “partida”, ele próprio recrutou Juan Salgado Ribera “Facundo”.
Antecedentes dos acontecimentos no Cambedo
Desde os finais de 1945, quando o regime franquista concluiu que a vitória aliada não o colocava em perigo, passou a dedicar-se à erradicação da guerrilha, incrementando a repressão. À Guardia Civil juntaram-se o Exército e “contrapartidas” de civis armados, “requetés” e falangistas. Nas zonas de fronteira, agentes da PIDE e da GNR intensificaram as operações de controlo e patrulha, aumentando a colaboração da ditadura salazarista na repressão ao “Maquis”, a única oposição efectiva ao regime franquista.
A “partida” de Demétrio desenvolve as suas actividades na comarca de Verín, (no Outono de 1945 foi passado pelas armas o chefe da falange desta localidade, alguns autores 8 atribuem-lhe a autoria do atentado), e conta com sólidas bases de apoio em Portugal. A solidariedade que os guerrilheiros encontravam deste lado da fronteira não era motivada essencialmente por afinidades ideológicas, as relações de parentesco, vizinhança, trabalho ou amizade jogavam um papel mais importante. No Cambedo casara uma irmã de Demétrio, nascido e criado na aldeia galega de Chãs, a apenas quatro quilómetros, e a sua rede de solidariedade estendia-se pelas aldeias portuguesas vizinhas. Juan Ribera, natural de Casas dos Montes, a aldeia galega mais próxima, músico como o seu pai e irmãos, animara desde jovem as festas populares, sendo conhecido em toda a região. Durante a Guerra Civil tinha estado “fuxido” e refugiado na zona.
No Verão de 1946 encontravam-se na região, para além da “partida” do Demétrio, um número indeterminado de guerrilheiros de outras “partidas”, onde se destacam os “históricos” Manuel Girón Bazán, Orozco Palácios, Enrique Oviedo, Angel Rodríguez e Alfredo Aguirre. No dia 16 de Setembro de 1946, estes cinco acompanhados por Bernardo Garcia Garcia e Juan Ribera, os dois guerrilheiros que resultariam mortos nos incidentes de Cambedo, deslocaram-se à aldeia de Negrões, no concelho de Montalegre, e executaram António da Sousa Pinto, que durante a Guerra Civil teria entregue um médico “fuxido” refugiado em sua casa à Guardia Civil, que o fuzilara. Nesta acção foram também mortalmente atingidos um criado de lavoura do Pinto e um habitante da aldeia.
Esta acção traria consequências importantes para todos os refugiados galegos na zona fronteiriça e, especialmente, para a rede de apoios que servia de recuo aos guerrilheiros. Os efeitos não tardariam em produzir-se, nos dias seguintes sucederam-se as prisões de barrosões relacionados com os guerrilheiros e as atenções das forças repressivas do Estado português concentraram-se na solução do problema. A própria organização guerrilheira faria posteriormente autocrítica pelo erro táctico cometido: ter actuado em Portugal, queimando com esse acto a retaguarda que tão útil tinha sido nos dez anos anteriores.
Uma campanha nos jornais alentou o sentimento adverso contra os guerrilheiros
Uma campanha de notícias nos jornais contra os “bandoleiros”, “assaltantes” ou “assassinos” galegos, cuidadosamente dirigida, alentou o sentimento adverso que se começou a alastrar na população raiana. “Aos olhos do povo, eles passaram, dum dia para o outro, duns contrabandistas simpáticos, sempre prontos a puxar da carteira, a bandidos perigosos, capazes de matar pessoas”, escreve Bento da Cruz 9 A PIDE não se ficaria pela campanha mediática. Ao que tudo indica, em colaboração com as forças repressivas do país vizinho, realizaram, a 29 de Outubro seguinte, uma operação de “bandeira falsa”: o assalto à camioneta de carreira de Braga-Chaves, na localidade de Parafita. Seis assaltantes, dos quais só dois falaram, com sotaque espanhol, roubaram as carteiras, relógios e fios de ouro aos passageiros que se dirigiam à Feira dos Santos de Montalegre. Meses mais tarde ficaria demonstrado no Tribunal Militar e no Plenário do Porto que os guerrilheiros galegos nada tiveram a ver com o assalto, mas, naquele momento, serviu para reactivar a campanha nos jornais e justificar o incremento da acção de vigilância na fronteira, com a deslocação de forças da GNR de outras zonas do Norte, para patrulhar a região, e de um número indeterminado de agentes da PIDE em ligação com a Guardia Civil espanhola, que intensificaram os esforços de recolha de informação nas várias aldeias, quer directamente quer através de informadores.

“A Batalha do Cambedo”
Na sequência destas diligências, o Comando da GNR de Vila Real, em coordenação com a PIDE a Guarda Fiscal e as forças repressivas espanholas, montou uma operação de busca e captura dos guerrilheiros galegos nas povoações de Nantes, Mosteiró de Cima, Sanfins de Castanheira, Sanjurge, Couto e Cambedo. Às zero horas do dia 20 de Dezembro de 1946, estavam concentrados no posto de Chaves da GNR cerca de duzentos guardas-republicanos deslocados das guarnições do Porto, Régua e Vila Real. Este contingente foi dividido em pelotões, sendo destinado um para cada lugar. Em cada pelotão incorporaram-se agentes da PIDE; naquele que tinha por objectivo o Cambedo, comandado por um alferes, seguiram dois pides. Partiram em camiões para os seus destinos às três horas da madrugada. Como não existia ligação rodoviária até ao Cambedo a parte final do percurso foi concluída a pé, a cujas imediações chegaram cerca das seis horas da manhã, iniciando de imediato a montagem do dispositivo, com a colocação dos agentes na entrada e saída do povoado e nas imediações das casas suspeitas.
A aldeia era composta por 89 fogos onde viviam 310 habitantes; o alarido dos cães, provocado pelos movimentos de mais de três dezenas de “forasteiros” na tranquilidade nocturna do seu território, anulou o factor surpresa da operação, facilitando a reacção aos guerrilheiros sitiados. Às sete horas da manhã ouviram-se os primeiros tiros, era Juan Ribera que abandonava a casa onde se encontrava, acompanhado do filho da sua anfitriã, Engrácia Gonçalves, e rompia o cerco. Confirmando a fama de bom atirador, na fuga, atingiu um dos pides com dois tiros e feriu também um guarda-republicano, internando-se na vegetação a caminho da sua aldeia natal a pouco mais de um quilómetro. Desconhecia as proporções da operação das forças repressivas, mais de quinhentos guardias civis controlavam os montes do outro lado da fronteira. Uma hora depois, esbarrou nas suas armas e retrocedeu. Alertado pelos tiros, o oficial da GNR ordenou a um grupo de agentes que batesse a colina, a meio da manhã, ouviu-se o eco de um tiro vindo dessa direcção, tinham encontrado o Juan Ribera, ferido, e acabaram com ele.
A meio da manhã chegou o pelotão destacado para a aldeia vizinha do Couto, entretanto chamado por um estafeta, e começou a revista casa por casa. O filho da Engrácia, José Barroso, encontrado na casa do seu vizinho João Valença, foi preso. Pelas treze horas, ouviu-se uma rajada de metralhadora; dos três guardas-republicanos que se dispunham a entrar numa casa para fazer a busca, dois não passaram do pátio de entrada e só sairiam dali, arrastados, já cadáveres 10. Era a casa de Manuela Garcia, irmã de Demétrio, em cujo perímetro o próprio e Bernardino Garcia resistiriam ainda mais um dia e meio às tentativas dos sitiantes para os neutralizar. Durante todo o primeiro dia, à medida que iam chegando mais reforços, prosseguiu a revista às casas da aldeia e multiplicaram-se as iniciativas para desalojar os dois sitiados, mas nem o recurso a granadas de mão conseguiu o objectivo e os pides decidiram obrigar o Manuel Bárcia, cunhado de Demétrio, a incendiar o seu próprio palheiro e a retirar do pátio os cadáveres dos guarda-republicanos. Até cair a noite continuou a troca de tiros.
Para evitar que os guerrilheiros aproveitassem as trevas para escapar, foram incendiadas duas medas de palha situadas nas imediações das casas cercadas. Já noite dentro chegaram mais reforços com projectores eléctricos, o Comandante da GNR de Vila Real, um destacamento da PSP do Porto e duas secções de morteiros de Caçadores 10, de Chaves. O total das forças envolvidas no Cambedo ultrapassava o meio milhar de homens, marcando presença um oficial da Guardia Civil espanhola. Ao nascer do dia, Cambedo da Raia apresentava o aspecto de um campo de batalha com tendas de campanha, apoios logísticos, postos de primeiros socorros, homens e morteiros em posição de combate, com troca intermitente de tiros entre sitiados e sitiantes. Experimentaram lançar granadas de gás lacrimogéneo trazidas pela PSP do Porto, mas o vento soprava na direcção contrária e, finalmente, decidiram-se pelas descargas de morteiro.
Foram evacuadas todas as casas em redor do objectivo e dada a ordem de bombardear. Trinta granadas de morteiro foram disparadas e o cerco foi de novo apertado. Um pide, protegido por um grupo de agentes da PSP e da GNR, que se adiantou para fazer o reconhecimento, foi recebido a tiro. Nova manobra de abertura do cerco, seguida de nova descarga de granadas de morteiro que deixaram as casas do quarteirão em ruínas fumegantes. O cerco apertou-se e o grupo de reconhecimento avançou uma vez mais, desta vez o pide foi atingido a tiro numa coxa. Do monte de ruínas restavam apenas intactos um lagar e um forno de granito. Intensificou-se o ataque com granadas de mão e metralhadoras apontadas a estes dois alvos, até que os guerrilheiros deixaram de responder. À boca do forno apareceu um lenço branco, pouco depois saiu o Demétrio. Algemado primeiro, esbofeteado depois, perguntado pelos seus companheiros, respondeu que lá dentro estava só o cadáver do Garcia, que tinha guardado a última bala para si próprio.
Jornal «O Século» de 22-12-1946
Jornal «O Século» de 22-12-1946
http://cambedo-maquis.blogs.sapo.pt
Demétrio Garcia Alvarez
Demétrio Garcia Alvarez “Pedro”, clichés da Pide: à esquerda logo a seguir à prisão, à direita antes de ser posto em liberdade em 1965. No centro, durante o cumprimento da pena no Tarrafal.
Desta operação conjunta das ditaduras ibéricas contra a guerrilha galega anti-franquista resultaria a prisão de sessenta e três pessoas, oito das quais galegas. Dezoito vizinhos do Cambedo perderam a liberdade por mais de um ano, o mesmo acontecendo a vinte e dois das localidades vizinhas. Nestas aldeias as buscas resultaram infrutíferas, embora se saiba que em Nantes, Angel dos Santos Rodríguez “António”, um dos guerrilheiros veteranos, e José Pinheiro Barbosa “Pepe”, um dos portugueses que integrou a guerrilha, alertados alertados da presença da GNR, fugiram e escaparam como puderam. A PIDE justificou as prisões no seu relatório no processo judicial julgado no ano seguinte no Porto em Dezembro de 1947, porque “uns mantinham ligações com os salteadores e outros davam-lhes guarida e protecção, vivendo à sua custa, todos sabendo que viviam do produto dos crimes que cometiam”. Dezanove dos detidos seriam condenados a diversas penas de prisão. Demétrio foi condenado a 28 anos de degredo, tendo cumprido uma parte importante da pena no Tarrafal, em Cabo Verde. Os restantes foram absolvidos.
A PIDE e a imprensa esconderam as motivações políticas dos guerrilheiros, apresentando-os como assaltantes, apesar de nas comunicações internas confidenciais de todas as forças repressivas serem apresentados como “guerrilheiros profissionais” ou “rojos”, e rapidamente se estendeu um manto de silêncio sobre os acontecimentos no Cambedo da Raia. Os seus habitantes arrastaram dezenas de anos a reputação de malfeitores ou de acoitantes de criminosos, rótulo que as autoridades lhes colaram, chegando alguns a não indicar a aldeia de nascimento, substituindo-a pela sede de freguesia, para evitar o opróbrio que lhes estava associado. Esta confiscação da memória pelo silêncio só começaria a romper-se no final dos anos oitenta, com a publicação de um opúsculo pela Câmara de Montalegre 11 e uma reportagem no Jornal de Notícias 12. De então para cá, os acontecimentos do Cambedo da Raia em 1946 foram tema para livros de ficção, ensaios, artigos, reportagens jornalísticas, filmes, documentários e blogs 13. Numa acção cívica de resgate da memória da solidariedade raiana, levada a cabo no Cambedo por um conjunto de intelectuais galegos, foi colocada uma placa no centro da aldeia “En lembranza do vosso sofrimento (1946-1996)”.
A partir dos acontecimentos de 1946 no Cambedo, a presença de guerrilheiros anti-franquistas na raia seca transmontana não está documentada. As organizações guerrilheiras na Galiza chegaram aos finais de 1949 praticamente destroçadas, alguns dos personagens referidos prosseguiriam a sua luta pela sobrevivência nos montes galegos e leoneses, como Manuel Girón, morto à traição, nas redondezas de Ponferrada, em 1951; Benigno Garcia “Foucelas”, ferido e preso pela Guardia Civil nos montes de Betanzos, fuzilado em 1952; José Castro Veiga “Piloto”, seria dos últimos a ser morto, aguentou-se até 1965, tendo sido crivado de balas pela Guardia Civil nos arredores de Chantada; em Dezembro de 1967 apareceu um cadáver à beira do caminho que liga Riamor com Santiago, na morgue a autópsia revelou a sua identidade, tratava-se de Ramón Varela “Curuxas” e, trinta e um anos depois de ter iniciado a guerrilha nos montes de Palas del Rei, morrera de ataque cardíaco. Outros, como os “históricos” Marcelino Villanueva “Gafas”, Mário Moran e César Rios, tomaram o caminho do exílio, na Argentina e no México, os dois primeiros, e em Paris, o último, uma das fontes de que Bento da Cruz se socorreu para a escrita da sua obra, na qual nos baseamos para a descrição dos acontecimentos de Dezembro de 1946.
A aldeia de Cambedo da Raia, pelos acontecimentos desmedidos ali vividos nas vésperas de Natal de 1946, ficou para a história como uma referência da atitude solidária das populações raianas para com os perseguidos pelo regime franquista. Esta característica enraizada nas gentes de um e do outro lado da fronteira, já se tinha manifestado no passado em sentido inverso. Poucos anos antes, os republicanos portugueses derrotados nas revoltas fracassadas contra a ditadura 14 encontraram nas povoações do lado galego os mesmos gestos solidários na sua fuga à repressão salazarista. Após a instauração da República em 1910 tinham sido as forças monárquicas a refugiar-se na região, de onde partiam para as incursões no norte de Portugal, e, já antes, no século XIX os liberais derrotados na Guerra Civil portuguesa, também conhecida por “Guerras Liberais”, ali tinham encontrado refúgio.
Delfim Cadenas
delfimcadenas@jornalmapa.pt

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