Previsão do Tempo

quinta-feira, 10 de junho de 2010

A 11 de Junho de 1955, deu-se a "Tragédia de Le Mans"

As corridas de automóveis sempre foram um desporto perigoso. Aliás, extraordinariamente perigoso e a roçar a insanidade (se analisado à luz das regras actuais), durante muitos anos. Desde a ausência nos veículos de quaisquer tipos de sistemas de segurança activa ou passiva ao equipamento meramente ‘decorativo’ dos próprios pilotos, até à quase promíscua proximidade entre público e pista sem qualquer tipo de barreira que garantisse uma protecção minimamente eficaz. As imagens das corridas de pista, de resto, pouco diferiam daquelas que ainda não são de todo invulgares em muitos ralis. O perigo e a sua proximidade são e sempre foram uns dos grandes atractivos das corridas de automóveis. E dizer que se ‘esteve lá’, que se sentiu o carro quase a roçar-nos nas pernas, é como um troféu raro que se ostenta e exibe aos amigos como prova de valentia.

A humanidade corre sempre atrás do prejuízo. Depois da ‘casa roubada, trancas à porta’, diz o adágio popular. Talvez tenha de ser mesmo assim, por que a experiência e o erro são fundamentais na aprendizagem. A história das corridas de automóveis é também ela feita dessa aprendizagem, feita da procura incessante, ditada pelas tragédias que foram ocorrendo, do equilíbrio, sempre instável e continuamente questionado, entre a atracção do perigo e a necessidade de regras e condições de segurança mais rigorosas.

Grandes corridas houveram (Targa Florio, Mil Milhas, Pan Americana, por exemplo) que acabariam por perecer ou por se transformar em (quase) passeios turísticos revivalistas, incapazes de se adequar aos novos tempos e às novas regras, ou belos circuitos outrora míticos (Nürburgring Nordschleife, Reims, Clermont-Ferrand…) que já não se “encaixam” nos tempos que correm. O tempo é inexorável e saber adaptar-se e manter viva a chama é uma ciência que tem pouco de exacta, depende de muitos factores de que a rapidez de resposta talvez seja um dos mais importantes. La Sarthe soube sobreviver a 84 anos de corridas. Soube ir respondendo a cada novo desafio, rejuvenescendo-se e adaptando-se de tal forma que o actual circuito seria quase irreconhecível aos seus fundadores.

Soube, inclusive, sobreviver à maior tragédia alguma vez ocorrida numa prova de automobilismo, que ensombraria para sempre a corrida de 1955 e levaria à suspensão de corridas um pouco por todo o lado (suspensão que ainda se mantém na Suiça) e ao abandono da Mercedes das competições durante mais de três décadas.

A 23ª edição das 24 Horas de Le Mans, disputada a 11 e 12 de Junho de 1955, prometia ser uma das mais disputadas de sempre, de acordo com a imprensa da época. Aos Ferrari 121LM de Umberto Maglioli (I)/Phil Hill (USA), Eugenio Castellotti(I)/Count Paolo Marzotto(I) e Maurice Trintigant(F)/Harry Schell(USA), Maserati 300S de Roberto Mières(RA)/Cesare Perdisa(I), Luigi Musso(I)/Luigi Valenzano(I). e Jaguar D-Type de Mike Hawthorn(GB)/Ivor Bueb(GB), Tony Rolt(GB)/Duncan Hamilton(GB) e Don Beauman(GB)/Norman Dewis(GB), a Mercedes contrapunha o seu novo 300SLR, equipado com um sistema de travão ‘aerodinâmico’ por forma a reduzir a desvantagem que os seus travões de tambor apresentavam face aos mais eficazes travões de disco da Jaguar, com uma primeira dupla de luxo, Juan Manuel Fangio(RA)/Stirling Moss(GB) a que se juntavam Karl Kling(D)/André Simon(F) e Pierre Levegh(F)/John Fitch(USA).

A corrida, no entanto, não começa de feição a Fangio, que se atrasa bastante logo no início deixando fugir Hawthorn e Castellotti. Uma série de voltas rápidas em que vai batendo recorde atrás de recorde e fazendo ultrapassagens no limite, Fangio apanha o duo da frente, encetando então um titânica luta a três. Castellotti entretanto atrasa-se, deixando o argentino e o inglês a sós, a um ritmo infernal.

E é precisamente no calor dessa luta, quando se iniciam os primeiros reabastecimentos, que a tragédia se irá dar. São 18:28 h da tarde do dia 11 de Junho de 1955, 2:28 h após o início da corrida, Fangio segue apenas 200 metros atrás de Hawthorn, que entretanto dobrara o Mercedes de Pierre Levegh, que seguia em 6º da geral, à chegada a Maison Blanche. Hawthorn, que há já três voltas era chamado para reabastecer, ao entrar na recta da meta, sai repentinamente da sua esquerda cortando a trajectória de Lance Macklin(GB), que entretanto acabara de reabastecer o Austin-Healey 100S e saía da sua ‘box’. Macklin, surpreendido, vê-se obrigado a guinar á esquerda para fugir ao embate com o Jaguar colocando-se na trajectória de Levegh, que circulando a 250 km/h apenas tem tempo, ao aperceber-se do acidente eminente, de levantar o braço avisando Fangio que o precede. O embate na traseira do Austin catapulta o Mercedes em direcção à bancada da esquerda onde centenas de pessoas assistiam à corrida a escassos metros da pista, apenas ‘protegidas’ por um pequeno talude. O ‘capot’, o motor e o eixo dianteiro do Mercedes separam-se no embate com a barreira e tornam-se autênticos projecteis varrendo tragicamente em cerca de 50 metros as primeiras filas da bancada.
Levegh morre instantaneamente na sequência do embate e com ele cerca de 80 pessoas que se encontravam na assistência (no seu site dedicado à tragédia, Gérard Mariscalchi, na altura adolescente de 14 anos que assistia à prova e acabou apoiando, na sua qualidade de escuteiro, as operações de salvamento, fala em 83 mortos no local, mais 9 nos dias seguintes e cerca de 140 feridos).

O Austin é projectado para a direita, na direcção do muro da ‘pit-lane’, onde atropela fatalmente um ‘gendarme’, Macklin é ejectado mas sem consequências graves e o carro irá finalmente parar junto ao muro do lado esquerdo. Fangio escapa milagrosamente ao acidente, passando a cerca 250 km/h e sem visibilidade a densa cortina de fumo que se ergue do carro de Levegh, ainda sem consciência do que se estava a passar, e evitando por centímetros o Austin de Macklin.

O governo francês ordena de imediato suspensão de todas as competições automobilísticas e abre um inquérito cujas conclusões (pelo menos as tornadas públicas) não permitem, no entanto, responsabilizar ninguém. A Mercedes abandonará a prova algumas horas mais tarde e (no final do ano, após conquistar os títulos mundiais de F1 e Sport…) todas as competições automobilísticas, de forma oficial, durante as três décadas seguintes.

Aqui acabam os factos e começam as especulações. Culpa de Hawthorn, demasiado ‘impetuoso’ a entrar na ‘pit-lane’, absorvido que estava na intensa luta com Fangio, e que será declarado ‘indesejável’ nos circuitos alemães durante um ano após o acidente? Poderá o silêncio posterior de Hawthorn ser entendido como sentimento de culpa ou simples pudor? Culpa de Macklin, ‘descuidado’ na forma como sai da sua ‘box’ e que não se terá apercebido da suposto levantar de braço de Hawthorn assinalando a sua entrada na ‘box’? Teria a Mercedes algo a esconder para abandonar Le Mans directamente para Estugarda, evitando as inspecções técnicas decorrentes do inquérito? Terá ou não o Mercedes de Levegh explodido no ar, em virtude de uma suposta mistura ‘explosiva’ (nitro-metano, álcool e acetona!?...) no combustível utilizado?

Levegh, nascido Bouillin mas tendo adoptado aquele nome em memória de seu tio Alfred Velghe, um pioneiro das corridas de automóveis que se identificava por esse anagrama, morreu naquele dia e talvez de qualquer maneira nunca se tenha apercebido do que se passou. Contava 49 anos de vida.

Macklin abandonará a carreira ainda nesse ano, aos 35 anos de idade, na sequência de um violento acidente numa prova do Tourist Trophy, ao evitar um outro acidente que vitimaria dois pilotos. Nas audições do inquérito terá falado de um ‘erro’ de Hawthorn mas sem o responsabilizar directamente pelo acidente, antes atribuindo a ‘culpa’ à velocidade a que circulavam os carros, ou seja, um incidente inerente às próprias corridas de automóveis. Morreu a 29 de Agosto de 2002.

Fangio sagrar-se-ia campeão do mundo de Formula 1 nesse ano e nos dois anos seguintes, pondo fim à carreira em 1958, aos 47 anos de idade, quando se apercebeu de que a equipa Maserati mudara de amortecedores, o ponto forte do 250F, por outros bastante inferiores apenas por razões económicas. Do acidente, ‘el chueco’, como era conhecido, dirá mais tarde “…preparava-me para dobrar Levegh, mas quando o vejo erguer o braço percebi que ele estava em perigo. Travei e ainda consegui passar. Devo-lhe a vida!” Faleceu a 17 de Julho de 1995.

Hawthorn ficará com a vitória para sempre ofuscada pela tragédia. Em 1958 sagrar-se-á campeão do mundo de F1, num campeonato que ficará célebre por ter sido obtido com uma única vitória contra as quatro de Stirling Moss. A respeito do acidente de ’55, de Hawthorn ficou apenas um silêncio, para alguns, ‘ensurdecedor’. Morreu em 1959, pouco antes de completar 30 anos de idade, num acidente de viação na sequência de um estúpido despique com Rob Walker.

Entretanto a corrida continua – ‘the ‘show must go on’, costuma-se dizer, e além do mais alega-se que a suspensão da corrida faria milhares de pessoas precipitarem-se nas ruas circundantes impedindo os veículos de socorro de cumprirem a sua missão urgente. Hawthorn vence a corrida – sem honra e sem glória? (Diz-se que acabará por nunca receber o troféu)

Imediatamente a seguir à prova, o ACO inicia obras no circuito de mudarão significativamente, em especial, a zona da recta da meta: alargamento da pista; criação de uma zona de desaceleração no acesso à ‘pit-lane’, alteração do raio da curva Dunlop e consequente redução do comprimento da pista (menos 31 metros); colocação de sinalização na curva de Mulsanne, onde a passagem é feita a velocidade mais reduzida, para não distrair os pilotos à passagem pela recta da meta. O prolongamento das obras obrigará ao adiamento da edição de 1956 para 28/29 de Julho, numa das raras vezes em que não a prova não decorreu a meio do mês de Junho como se tornou habitual desde a 2ª edição e se mantém ainda. Essa será a 4ª das 13 versões que o circuito já conta.

Há quem suspire nostalgicamente pelas corridas de automóveis desses tempos. Tempos feitos de coragem, bravura e heroísmo, dizem. Mas tempos também de muita loucura e, porque não dizê-lo, alguma insanidade na forma algo despreocupada como se encaravam as corridas de automóveis e os seus perigos. Mas talvez fosse apenas um reflexo de um tempo em que por razões várias se convivia mais de perto com a morte, em que a esperança de vida era mais curta, em que as dificuldades do dia-a-dia faziam esquecer os riscos que se corriam naquele que era apenas um dia de festa.

Nunca saberemos, pois, a quem atribuir a ‘culpa’, se é que a há. Talvez de resto nem interesse muito, pois nada trará os mortos de volta nem apaziguará os vivos.

Importará sim reflectir na necessidade sempre premente de garantir condições de segurança adequadas e eficazes e lembrarmo-nos que o ‘antigamente’ só é bom quando isolamos uma qualquer boa recordação do seu real e completo contexto histórico…

A todos os que faleceram na sequência desse acidente, fica aqui a minha (nossa) homenagem.

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