O que se passa no mundo Árabe?
Baptista Bastos
O vendaval político e social que varre o Magreb até ao Médio Oriente não pode deixar de desencadear algumas reflexões. Porquê este "efeito de dominó", numa escala até agora nunca vista? Quem está por detrás deste surpreendente movimento generalizado? Ninguém acredita na "espontaneidade" de uma acção que terá como cenário a mudança dos senhores do petróleo, e a substituição de uma direcção de interesses até agora não claramente desenhada. E também é interessante o alvoroço de políticos e comentadores, quando referem que, nas revoltas, não se ouçam gritos contra Israel e os Estados Unidos. Todas as dúvidas são ajuizadamente permitidas.
A Arábia sempre foi objecto de disputas tribais e coloniais, e alvo de cobiças que degeneraram em lutas e em batalhas sangrentas. Frequentemente o mapa daquela zona foi redesenhado, consoante esses interesses e essas ambições nem sempre muito claras e honestas. As reivindicações de territórios, ou por invocação do fraudulento direito divino ou por desígnios duvidosamente dinásticos, aquela vasta área do mundo tem sido cortada, dividida e sofrida. Com o petróleo e o gás natural as coisas tornaram-se cada vez mais complexas. Os "interesses" dos Estados Unidos misturaram-se com a geoestratégia e com as políticas hegemónicas de Israel, e a espécie de "tampão" que este país representa.
Há, entre outros, um livro muito importante, como iniciação a essa problemática. "Os Sete Pilares da Sabedoria", de Thomas Edward Lawrence, é um clássico fundamental. Um épico do deserto, que explica muito da complexidade de um problema que se mantém cada vez mais actual. Lawrence, oficial dos serviços secretos ingleses, apaixonou-se de tal forma pelo nacionalismo árabe, contra o domínio turco, durante a I Guerra Mundial, que o seu envolvimento, político, moral e social, ajudou à derrota da Alemanha, da qual a Turquia era aliada. A teia reticular do texto, o conteúdo sociológico que contém, podem ajudar-nos a compreender o que, hoje, está em jogo.
A revolta árabe é explicável pelas contradições dos regimes criados, a partir de então. Mas não se pense que a instauração da "democracia", no sentido ocidental do termo, é a finalidade primeira dessa revolta. Nem que a consequência "dominó" resulta, somente, de uma rebelião jovem, sustentada pela internet e pelas mensagens em sms. Mentem-se a pergunta: quem e o quê estão por detrás deste inusitado movimento? E que querem os protestatários? Apenas que os seus países se transformem, de um dia para o outro, em democracias? E que democracias?
O muito que está por esclarecer tem sido absorvido em sensacionalismo, em ignorância e em julgamentos populares. Volta a pergunta: a quem interessa ou, melhor: que interesses cavilosos e ocultos determinam esta "explosão" de defesa de valores até agora desconhecidos de nações e de povos, cujas tradições, culturas e modos de ser diferem, em absoluto, das nossas consuetudinárias normas?
E é estranhíssimo que os grandes "democratas" europeus só há semanas tenham sabido que Mubarak era um tirano, embora o seu partido tenha sido apoiado pelo ocidente, pelos Estados Unidos e pela Internacional Socialista, de que fazia, e faz parte. No caso da Tunísia, idem idem, aspas aspas. Na Líbia, a vergonha atinge as raias da insanidade. Os altos funcionários, que lambiam as mãos de Kadhafi, apressaram-se a comunicar a sua repulsa pelo tirano. Como se não soubessem a dimensão de Kadhafi, a sua imoralidade, a sua responsabilidade no terrorismo que amedrontou o mundo em toda a década de 80. O "carisma" do coronel, tão louvado por dirigentes ocidentais, entre os quais o primeiro-ministro português, não poderia nunca encobrir ou dissimular a imensidão dos seus crimes. Mas, em boa consciência, será de glorificar esta gente indigna e indecente, sem a coragem dos seus actos, que mais parece ratos a escapar do barco naufragado?
Afinal, que desejam os revoltosos da Arábia? Os "slogans" de liberdade!, liberdade!, não são suficientemente claros, até porque essas fundas razões morais não correspondem às idiossincrasias das suas culturas, tomando o conceito "cultura" nas suas diversíssimas interpretações.
E que desejam os inimigos de Kadhafi? Apenas removê-lo do poder para dar lugar a uma nova ordem? E que ordem será essa? Perante o que temos visto, nestes últimos dias, de sordidez e de baixeza humanas; de cobardia e de traição, pouco mais nos resta para nos espantar.
O que por aí vem, tendo em conta o desfile desta miséria, será, talvez, a possibilidade de compreendermos os bastidores desta tragédia e o que, de facto, tem sido ocultado ao nosso entendimento.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
04/03/11