Irlanda - O preço da felicidade, o custo da desgraça
por Colm Tóibín
Devia ser o verão de 1965, ou talvez um ano antes, e estávamos na praia na costa leste da Irlanda. Eu tinha 9 ou 10 anos. Minha mãe e meus irmãos provavelmente tinham ido nadar e isso significa que eu estava deitado no tapete escutando a conversa do meu pai com a irmã da minha mãe. A irmã da minha mãe gostava de discutir grandes assuntos como religião e política. Agora ela estava perguntando a meu pai, que era um membro ativo do partido do governo, o Fianna Fáil – que desde 1932 esteve quase sempre no poder – se ele apoiava todas as políticas e decisões de seus correligionários. Meu pai disse que sim, e isso me pareceu certo, pois nunca imaginara que ele pudesse pensar de outro modo. Eu sabia a opinião dele sobre o outro partido – o Fine Gael, principal partido oposicionista – que era a de que você podia cumprimentar seus membros quando cruzava com eles na rua, mas se alguma vez votasse neles sua mão direita gangrenaria e seria amputada.
O pai do meu pai era um nacionalista irlandês e tinha lutado contra os britânicos. Participou da rebelião de 1916, que, mesmo sendo derrotada, tornou-se o início do fim do domínio britânico na Irlanda. Em 1922, quando finalmente se retiraram, os ingleses decidiram dividir a Irlanda, ficando com o norte do país, que tinha uma população protestante maior e não queria se separar da Grã-Bretanha. E homens como meu avô eram totalmente contrários a esse arranjo. Meu avô e seus amigos queriam tudo ou nada, uma república formada por toda a ilha; os da outra facção, até ali seus camaradas na luta contra o domínio britânico, queriam aceitar a proposta britânica de uma Irlanda dividida. As duas facções, incluindo irmãos, travaram uma feroz guerra civil. Noventa anos depois, os dois principais partidos – Fianna Fáil e Fine Gael – descendem dessa guerra.
A política de ambos os lados era nacionalista, anti-imperialista e não propriamente de esquerda. O ideário não ia além da vaga noção de uma Irlanda autossuficiente. A guerra que travaram não foi uma guerra de classes. Assim, enquanto alguns ingleses partiram e perderam suas propriedades, a burguesia irlandesa não foi afetada pela independência. Os proprietários rurais mantiveram suas terras; os lojistas, suas lojas; os banqueiros, seus bancos. E a revolução irlandesa foi também comandada principalmente por católicos. O fim da guerra civil viu crescer, ao sul da fronteira, um Estado católico insular profundamente conservador e, ao norte, numa imagem especular, um estado protestante insular profundamente conservador. O partido do meu avô, Fianna Fáil, do qual meu tio também era membro, e no qual meu pai logo ingressaria, tomou o poder no sul em 1932; tornou-se ainda mais conservador e mais católico do que o outro partido, Fine Gael. O Partido Trabalhista continuou pequeno, sempre a terceira força; o movimento sindical também era conservador, e quase não tinha influência.
O problema para o novo Estado irlandês era como proporcionar trabalho à população. Os melhores empregos eram no funcionalismo público. Quase não havia indústria; a Irlanda era ainda um país basicamente agrícola. Dos anos 20 em diante muitos jovens emigraram para a Grã-Bretanha e Estados Unidos em busca de trabalho. Em 1939 Seán Lemass, que se tornaria primeiro-ministro vinte anos mais tarde, disse que os problemas econômicos da Irlanda tinham “criado uma situação em que o desaparecimento da raça era uma possibilidade que não podia ser ignorada”. O isolamento do país se acentuou ainda mais por causa da posição de neutralidade que assumiu durante a Segunda Guerra Mundial. Depois da guerra, enquanto a Europa era reconstruída com dinheiro do Plano Marshall, a Irlanda ficou, assim como a Espanha e Portugal, à margem da nova prosperidade.
Era, nos anos 50, um lugar atrasado, do qual era um alívio, quase um prazer, emigrar. Quatro em cada cinco crianças nascidas na Irlanda entre 1931 e 1941 emigraram. No final daquela década estava claro que era preciso fazer algo para modernizar o país. Em 1958 foi publicado o Primeiro Programa para a Expansão Econômica. A Irlanda tinha sido admitida no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional em 1957. A partir de 1958, o país se abriu para o investimento estrangeiro e para o capital externo, predominantemente americano.
A década de 60 foi, então, um tempo de mudanças na Irlanda. Não apenas o pensamento econômico se liberalizou, como também a influência da Igreja começou a declinar, sob pressão, por exemplo, do movimento feminista. O avanço da televisão e a suspensão da draconiana censura a livros contribuíram para a mudança. A Irlanda do Norte também começou a mudar com o avanço do movimento pelos direitos civis, que exigia maior igualdade para os católicos. Isso levou no norte à ascensão do IRA, que estava disposto a matar e mutilar pelo fim da divisão do país e pela derrubada do domínio britânico na região.
Meu pai morreu em 1967. Tinha apoiado integralmente a abertura da economia irlandesa, e eu muitas vezes me perguntei como ele teria reagido diante da violência na Irlanda do Norte. Homens da sua geração insistiam que queriam um único Estado na ilha, mas o que eles realmente queriam era estabilidade e progresso econômico ao sul da fronteira (a Irlanda foi declarada uma república em 1949). Assim, quando começou a década de 70, o sul decidiu ignorar a violência no norte e passou a olhar para fora. Queria ingressar na Comunidade Econômica Europeia ao mesmo tempo que a Grã-Bretanha. Depois de prolongadas negociações e de uma vitória esmagadora num referendo, a República da Irlanda entrou na CEE, como era então chamada, em 1973.
Foi aí que começou a verdadeira mudança. Os gastos públicos aumentaram em todas as áreas. A frequência escolar triplicou. A proibição da venda de anticoncepcionais foi declarada inconstitucional em 1973. O número de mulheres a integrar a força de trabalho duplicou em uma década. Com dinheiro europeu, novas estradas foram construídas, dando lugar a uma infraestrutura mais moderna.
Mas algumas coisas não mudaram. O político para o qual meu pai trabalhava em épocas de eleição tinha lutado na rebelião de 1916 e ainda era membro do Parlamento em 1969. Seu filho se tornou senador. Seu neto é, no momento, membro do Parlamento Europeu. Na Irlanda hoje, em 2011, o primeiro-ministro, o vice-primeiro-ministro, o ministro das Finanças e o líder da oposição, que se tornará o próximo primeiro-ministro, são todos filhos de políticos. Não tiveram que fazer quase nada, ou sequer pensar muito, antes de entrar na política. Era como se tivessem herdado dos pais os assentos no Parlamento e a filosofia política. Em outras áreas, como a carreira médica, a carreira jurídica ou a financeira, pouco mudou. Todos vêm de famílias da alta burguesia, estudaram em escolas de elite e nutrem o sentimento de que o poder lhes é devido, e isso nenhuma transformação social ou econômica parece abalar. Ao mesmo tempo em que a Irlanda mudava e cresciam as oportunidades, o país continuava curiosamente estagnado em termos sociais, e curiosamente conservador em termos políticos, com os dois partidos da guerra civil, ambos conservadores e convencionais, garantindo a estabilidade.
Era um pouco estranho viver aqui, um lugar que não teve Renascença, que quase não teve Reforma, nem Iluminismo, nem Revolução Industrial. Somente uma história de violência, pobreza e emigração. Um lugar governado até 1922 pelo Império Britânico, seguido de quatro décadas de estagnação cultural e econômica antes da integração ao império europeu, por assim dizer, em 1973. E, no entanto, havia também um surpreendente fascínio em torno da Irlanda, em especial de Dublin, onde o mundo da escrita – o poema, o romance, a peça de teatro, o artigo de jornal – era tratado com uma espécie de reverência e seriedade que só se encontra em sociedades nas quais faltam muitas outras coisas. Isso foi algo de que o governo se deu conta no final dos anos 60, compreendendo que a imagem da Irlanda era criada por escritores e cantores, e que essa imagem era tão importante quanto as políticas econômicas da Irlanda para atrair investimento estrangeiro. Subitamente, Yeats, Joyce e Beckett ficaram na moda, e a política governamental com relação à cultura se tornou esclarecida.
Foi Margaret Thatcher quem percebeu que, na verdade, a República da Irlanda não cobiçava territórios na Irlanda do Norte. Queríamos estabilidade ali, e o fim da violência, mais ainda do que queriam os britânicos. Então, a partir de 1985, e da assinatura do Acordo Anglo-Irlandês, os governos britânico e irlandês trabalharam juntos, e esse trabalho levou, uma década depois, ao fim da campanha do IRA no norte.
Nesse ínterim, a República da Irlanda se tornou uma economia aberta, dependendo cada vez menos da agricultura e cada vez mais do investimento estrangeiro. As multinacionais estavam satisfeitas conosco: nosso movimento sindical não era combativo; tínhamos uma mão de obra escolarizada e flexível; falávamos inglês; éramos membros da União Europeia; e nossa taxação sobre os seus lucros era mais baixa que a de qualquer outro país da UE.
Em 1984 comprei uma casa em Dublin. Foi difícil. Embora eu tivesse um emprego seguro, nenhum banco, em princípio, quis me dar um empréstimo. Notei o quanto os gerentes eram cautelosos, como se mostravam desconfiados diante de qualquer coisa fora do normal. A casa ficava numa área da cidade que na época não era considerada boa, e isso os deixava intrigados a meu respeito. Finalmente consegui o empréstimo. Os juros eram altos. Em dois anos o valor da casa tinha caído 20%. E então os preços começaram a subir, mas os gerentes de banco continuaram no caminho da prudência. Em 1997 quando decidi me mudar de novo, tive um bocado de dificuldade para conseguir um segundo empréstimo, embora tivesse quase terminado de pagar o primeiro.
No início do novo século, porém, com os preços das casas subindo por toda a Irlanda, descobri que os bancos irlandeses estavam jogando dinheiro na mão da gente. Os velhos gerentes tinham se aposentado; agora havia uma geração nova e impetuosa. Para meu espanto, consegui sem dificuldade um empréstimo para comprar uma casa na frente da praia. Quase não me fizeram perguntas. E houve ainda uma sugestão para que eu pegasse mais dinheiro emprestado para investir em novas propriedades; por pura preguiça não aceitei essa oferta.
A essa altura, a Irlanda estava integrada ao euro, introduzido em janeiro de 2002. Pelo fato de a moeda ser efetivamente controlada pela Alemanha, as taxas de juros estavam e permaneceriam baixas, assim como os índices de inflação. Fazer parte do euro me deixava orgulhoso. Me lembro que estava em Ibiza com amigos escoceses em 1º de janeiro de 2002 e usei meu cartão naquela manhã para sacar cédulas novinhas e me gabar de que a Irlanda, como membro do euro, era mais europeia que a Grã-Bretanha.
Se a gente não parasse para pensar, o euro parecia uma boa ideia. Oferecia estabilidade, e isso significava que a Europa poderia competir com os Estados Unidos, que o euro poderia se tornar uma moeda internacional mais poderosa que o dólar. Contribuía para o sentimento de que a Europa era agora um lugar sem barreiras, onde era possível ir de carro de Portugal até o leste da Alemanha e depois descer para a Itália sem trocar dinheiro e sem ser parado pela polícia em nenhuma fronteira.
O problema era que o euro era regulado pelo Banco Central Europeu, com sede em Frankfurt, mas cada Estado tinha sua própria política econômica, suas próprias forças e fraquezas. Ficou claro desde o começo que alguns países no sistema do euro – Alemanha, França, Holanda – tinham economias muito mais fortes do que outros – Irlanda, Espanha, Portugal, Grécia. Esperava-se que a regulação e a prosperidade crescente criassem aos poucos uma Europa mais equilibrada, e que o euro acelerasse esse processo.
No início, operaram-se maravilhas na Irlanda, com a ajuda de um aumento da atividade multinacional norte-americana. Atingimos pleno emprego. A todo momento eu via estatísticas demonstrando que a Irlanda tinha se tornado um país de sucesso, uma lição para o resto do mundo. Políticos, incluindo alguns dos maiores idiotas que a Irlanda já produziu, competiam entre si reivindicando o crédito pelo que ficaria conhecido como o Tigre Celta.
E naqueles mesmos anos outras mudanças estavam ocorrendo. Em 1988, a Corte Europeia de Direitos Humanos ordenou que o governo irlandês mudasse a lei contra o homossexualismo. Nos anos 90, a proibição do divórcio também foi retirada da Constituição. (A proibição do aborto, inserida nos anos 80, permaneceu.) E também teve início algo inimaginável. O Estado enfrentou a Igreja, que até então era todo-poderosa, sentindo-se acima da lei. Padres foram acusados, condenados e presos por abuso sexual de menores. No começo do novo século, apareceram muitos relatórios oficiais provando que o abuso e a violência selvagem cometidos por padres e membros das ordens religiosas contra aqueles sob sua guarda – frequentemente órfãos ou crianças pobres – tinham sido sistemáticos e encobertos com cuidado pelas autoridades eclesiásticas. As pessoas estavam furiosas com a Igreja. De repente, o poder da Igreja Católica na Irlanda virou coisa do passado.
Assim, à medida que a primeira década do século XXI avançava, as pessoas começaram a se perguntar se essa onda de prosperidade e secularização transformaria a Irlanda e afetaria, por exemplo, a literatura irlandesa, se nos faria produzir um tipo diferente de romance ou poema ou peça de teatro, se tornaria mais leve o nosso tom, ou mais comerciais as nossas obras. Já que tudo tinha se tornado comercial, por que não a cultura também?
Seria possível que a Irlanda fosse tão frágil que a chegada da prosperidade pudesse mudar fundamentalmente a sua cultura? Naqueles anos, eu fiquei à espreita dessa possibilidade. Vi como os novos-ricos se tornaram extravagantes e vulgares, e como o consumo ostensivo parecia adicionar uma aura de histeria à atmosfera do país. Mas isso era só na superfície, entre os poucos que podiam se dar ao luxo de ter helicópteros particulares ou motoristas. Para o resto do país, o dinheiro trouxe prazer e um certo conforto. Notei, ao viajar com frequência aos Estados Unidos, que os aviões estavam todos lotados, não de turistas americanos, nem de empresários irlandeses, mas de consumidores irlandeses com o bolso cheio de cartões de crédito na viagem de ida e sacolas cheias de compras reluzentes na viagem de volta. A maioria era gente irlandesa comum e notei o quanto eles se divertiam, como imediatamente, a exemplo dos imigrantes do passado, eles encontravam em Nova York um bar, um restaurante ou um hotelzinho, geralmente administrado por irlandeses, onde se sentiam à vontade.
Em casamentos e enterros, eu prestava atenção para ver se notava alguma diferença. As festas de casamento eram maiores, gastava-se mais, e a vida era melhor porque a maioria dos convidados morava na Irlanda, e não tinha que viajar da América ou da Grã-Bretanha ou da Austrália para estar presente. Mas os homens se encostavam no balcão do bar do mesmo jeito de sempre; a música continuava péssima, e os chapéus que algumas mulheres usavam talvez fossem mais caros, mas revelavam o mesmo mau gosto de sempre. As pessoas ficavam bêbadas do mesmo jeito. Isso ao menos não tinha mudado, ainda que agora bebessem mais vinho e menos Guinness.
Algumas das mudanças vinham de longa data. Desde o final dos anos 60, a frequência das missas semanais vinha caindo; continuou a cair. Desde o final da década de 60, os supermercados tinham mais produtos estrangeiros – mais massa, patês, azeite de oliva – e a dieta irlandesa continuava a se aproximar da dieta da França ou da Espanha. Nos enterros, especialmente na cidadezinha onde nasci e cresci, não parecia ter havido mudança alguma; as pessoas se comportavam nas pequenas comunidades exatamente da mesma maneira, com a mesma reverência pelo corpo, o mesmo zelo pelos parentes e amigos, a mesma seriedade diante da morte.
E ainda que as oportunidades de ganhar muito dinheiro aumentassem, a ideia de se tornar escritor, ator ou músico ainda merecia profundo respeito. Em 2006 fui indicado pelo governo para o Conselho das Artes e examinei todos os pedidos de subvenção. Era como se nada tivesse acontecido. Pequenas companhias teatrais ainda estavam sendo criadas, trabalhando não por dinheiro, nem sequer pela fama. Jovens músicos, tanto na música tradicional irlandesa quanto na clássica, continuavam a surgir. E o mais estranho, talvez, foi que a geração que chegou à idade adulta com essa nova prosperidade produziu um bom número de jovens escritores – Claire Keegan, Paul Murray, Kevin Barry, Clare Kilroy, Christian O’Reilly – que exploravam os mesmos temas de Joyce ou Beckett, Edna O’Brien e John Banville. Escreviam sobre famílias irlandesas e infância irlandesa, a escuridão e o isolamento da Irlanda. Usavam um idioma que haviam herdado; e escreviam principalmente para o seu próprio país e eram lidos avidamente.
Eu me perguntava então se o dinheiro que veio nos anos 90 e durou por uns quinze anos não teria servido apenas para tornar as pessoas mais felizes, dando a elas um pouco mais de segurança. Parecia que a prosperidade que chegou à Irlanda significava que pais e avós podiam ficar tranquilos sabendo que a nova geração permaneceria no país, encontraria trabalho, criaria raízes, e isso os deixava felizes. Além disso, neste país do norte com seus longos invernos e chuvosos verões, todos adoram viajar para o sul, e naqueles anos, nas manhãs de sábado, havia uma felicidade palpável no aeroporto, de onde famílias inteiras partiam para a Grécia, Portugal ou Espanha. Às vezes, porém, era tudo excessivo: os novos restaurantes, de preços abusivos e comida não muito boa, ficavam lotados todas as noites; as pessoas pareciam sentir prazer em atingir o limite de seus cartões de crédito; o preço das casas tornou-se tópico de intermináveis discussões; os irlandeses compravam apartamentos na Espanha e em Portugal sem se preocupar em aprender uma palavra da língua local.
Mas uma coisa fundamental não mudou. Entrando em qualquer bar de Dublin, via-se que continuavam as conversas e risadas, a sensação quase de performance, o modo caloroso e divertido como as pessoas se relacionavam umas com as outras – um clima muito diferente do comportamento frio num bar de Londres ou de Paris. Observando turistas irlandeses num aeroporto nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, via-se nos seus rostos uma profunda desconfiança em relação às autoridades constituídas, uma espécie de retraimento, uma falta de segurança. A música que se ouvia naqueles anos, os poemas e romances escritos, as peças encenadas, tudo isso era feito com a mesma sensação de que a palavra era importante. Também na Irlanda daqueles anos o esporte permaneceu no centro das coisas, incluindo os dois esportes nacionais amadores: o hurling[1] e o futebol gaélico. Era possível assistir a uma partida, mesmo em Dublin, e ter a impressão de ter voltado aos anos 50.
Em outras palavras, o dinheiro era só dinheiro, e ao mesmo tempo em que as pessoas gastavam muito, e viviam sem prudência, elas também usufruíam dessa prosperidade, da segurança que ela trazia, das viagens ao exterior, das reuniões familiares, das roupas vistosas, das refeições em restaurantes, das casas de férias, do sentimento vertiginoso de que a vida nunca tinha sido melhor. Mas quem examinasse com cuidado aqueles anos descobriria facilmente que a nova riqueza na Irlanda era quase ilusória e não duraria.
Em 2006 fui convidado a debater essa relação entre o milagre econômico irlandês e a cultura irlandesa num simpósio nos Estados Unidos. Decidi observar primeiro a anatomia do milagre econômico, e algumas coisas que descobri me chocaram. Eis o que escrevi na época: “Um grande volume de atividade econômica na Irlanda está concentrado não no comércio ou na consolidação da produção, mas na construção civil. A Irlanda é, de acordo com o Bank of Ireland, a segunda nação mais rica do mundo, atrás do Japão. E, observa o banco, um aspecto crucial dessa riqueza é que é riqueza de primeira geração, criada nos últimos dez anos. Se analisarmos a riqueza da Irlanda, veremos que não é como a riqueza em outros lugares. Os irlandeses estão gastando e tomando empréstimos à vontade, mas não investem em áreas como pesquisa e desenvolvimento, que criariam mais prosperidade no futuro, mas em imóveis, que dependem dos preços do mercado imobiliário para manter seu valor.”
Os irlandeses estavam viajando muito, mas poucos iam para a Alemanha, e pouquíssimos chegaram a compreender que a Alemanha tinha mudado, e que essa mudança seria prejudicial para o futuro da Irlanda quando a economia irlandesa entrasse em dificuldades. Os alemães do Leste ingressaram na UE ao mesmo tempo em que se integraram à Alemanha Ocidental. Diferentemente dos húngaros, digamos, ou dos tchecos, entraram na UE sem pensar duas vezes. Concentraram-se unicamente nos benefícios que a reunificação traria para eles. A Alemanha, por sua vez, concentrou-se em fazer a reunificação funcionar. De uma hora para outra, a Alemanha Ocidental ganhou uma nova população, em boa parte qualificada, e isso significava que os salários baixariam ou ficariam estáveis. O governo alemão tomou o cuidado de não superaquecer a economia; os impostos continuaram elevados. Os bancos alemães, apesar das baixas taxas de juros, não franquearam seus cofres aos investidores alemães. Eles emprestaram a outros bancos.
Naqueles anos, por todo o continente, a outrora poderosa ideia de que a Europa era uma cultura única e deveria se tornar cada vez mais uma economia única estava murchando. Acreditava-se que a diluição da soberania nacional tinha ocorrido rápido demais, sem debate suficiente. Havia uma visão de que a Europa era um superestado, mas não uma democracia, que sua burocracia de salários excessivos não prestava contas a ninguém, e que cada Estado nacional tinha direitos e tradições que mereciam ser protegidos. Na Alemanha, disseminou-se a opinião de que não era mais tarefa dos países ricos ajudar os países pobres.
Em 2008, quando o governo americano permitiu que o banco de investimentos Lehman Brothers falisse, o Banco Central Europeu decidiu que isso não aconteceria com os seus bancos. Os riscos eram grandes demais. Na Irlanda, um banco em especial – o Anglo Irish Bank – vinha crescendo muito, especialmente na área de crédito imobiliário. E devido à frouxa regulamentação na Irlanda e, ao que parece, a uma regulamentação quase inexistente por parte da UE, o Anglo Irish estava arriscando demais. Não obstante, os seus diretores eram tratados como príncipes num país sem realeza. Escrevia-se sobre eles como se fossem lordes. Dizia-se que eram eles que tinham a capacidade de levar a Irlanda para o futuro, onde se veria livre da pobreza e da emigração, livre de seu passado de colônia.
Assim, quando os banqueiros procuraram o governo em setembro de 2008 para dizer que precisavam desesperadamente de ajuda estatal, o governo tinha dois motivos para ouvi-los. Primeiro, o Banco Central Europeu tinha deixado claro que nenhum banco deveria falir, e os políticos irlandeses não tinham experiência alguma em finanças internacionais ou interesse algum em desafiar uma organização tão venerável, sediada na Alemanha. Segundo, os políticos gostavam dos banqueiros e os admiravam, e não desconfiaram que as cifras que lhes eram apresentadas estavam completamente erradas. Não sabiam que, se o Estado irlandês salvasse do naufrágio os seus bancos, os custos representariam o dobro da receita anual com impostos. E inocentemente se dispuseram a garantir os bancos.
Nesse ínterim, a bolha imobiliária tinha estourado. A receita governamental em 2009 foi de 35 bilhões, enquanto os gastos foram de 55 bilhões. A Irlanda precisaria pedir dinheiro emprestado em 2010 e nos três ou quatro anos seguintes. O país estava vulnerável porque o custo de salvar os bancos era inimaginável; os políticos pareciam temer divulgar a cifra e os banqueiros obviamente também não a revelavam. (Os banqueiros agora tinham caído em desgraça. Segundo consta, nem em partida de golfe alguém queria ser visto ao lado deles.)
Num ataque especulativo ao euro, a Irlanda era o elo mais fraco. A Grécia já tinha sido salva do naufrágio, para grande consternação do contribuinte alemão. E logo, parecia, tanto a Espanha como Portugal iriam precisar de ajuda. Os bancos irlandeses estavam sobrevivendo com dinheiro do Banco Central Europeu; a Comissão Europeia também tinha um fundo para ajudar países necessitados, mas isso traria consigo o Fundo Monetário Internacional, como ocorrera na Grécia, e a ajuda só seria fornecida sob as mais severas condições. A chegada da Comissão e do FMI significaria que a Irlanda, poucos anos antes um dos países mais ricos do mundo, era agora uma economia moribunda.
Os políticos continuavam a se comportar como se fossem competentes. Estavam dia e noite no rádio e na televisão, exalando controle e uma estranha certeza de que ainda tinham legitimidade para comandar. Lentamente, a população despertou para o que estava acontecendo. A ira contra o Fianna Fáil, o partido de meu pai e meu avô, não é corriqueira. Quando a eleição vier, o partido será dizimado. Porque representavam, desde os anos 60, tanto o patriotismo como o pragmatismo, e porque fracassaram em ambos os campos. Eles se tornaram alvo fácil depois de cederem a soberania da Irlanda ao FMI, uma soberania pela qual lutaram os nossos antepassados.
Enquanto isso, a emigração recomeçou, e os jovens estão se mudando para a Grã-Bretanha, a Austrália e o Canadá. Estamos perdendo mais uma geração. Mas estamos também perplexos, com um misto de choque e vergonha. Como pudemos acreditar que um pequeno país como a Irlanda, com uma história de pobreza e fracasso, pudesse ser rico e permanecer rico? Por que compramos casas que custavam tão caro e agora valem tão pouco? Como confiamos que a Europa viria nos salvar, sem pensar que viria também nos punir por nossa insensatez? Como confiamos no Fianna Fáil, cujos ministros não sabem coisa alguma de economia, e entraram na política só por causa de suas famílias?
As noites escuras do inverno serão um bom momento para romancistas, dramaturgos e poetas. É fácil deixar a televisão e o rádio desligados. Já ouvimos o bastante; conhecemos as más notícias. No início dos anos 1890, quando a Irlanda também estava de
joelhos, e os padres e políticos também tinham feito o que há de pior, o poeta W. B. Yeats viu o futuro da Irlanda como cera mole, um lugar que podia ser moldado, no qual a vida da imaginação poderia vir a assumir o primeiro plano. Talvez isso seja possível de novo, talvez nossos romances, peças e poemas passem a importar mais, já que não há nada aqui, exceto preocupação, desespero e riso soturno. Essa abertura para a imaginação poderia parecer, em momentos de devaneio, uma coisa boa. Mas é um alto preço a pagar pelo que foi feito ao nosso país, ou pelo que o país fez a si mesmo. Embora o estrago, ao que me parece, esteja na superfície, e afetará apenas o nosso orgulho e o nosso bolso; o espírito das coisas aqui continua o mesmo, a cultura da Irlanda não mudou nos anos do boom e não mudará agora que temos diante de nós uma década de relativa pobreza.
[1] Hurling: literalmente, arremesso. Jogo tradicional irlandês semelhante ao hóquei (N.T.).