James Mill e os freios contra o mau uso do poder
Este artigo é um exercício de reflexão sobre a ordem liberal do século XIX, representada aqui especialmente pelo pensamento de James Mill, entre outros teóricos clássicos, considerado um grande expositor do utilitarismo. Autor de “Essay on Government” (1978), ele se concentra no indivíduo, enfatizando, através das experiências com a natureza humana, que os seres humanos são propensos à corrupção pelo poder e ao abuso deste. Sendo assim, todas as questões associadas ao governo dizem respeito aos meios de evitar o seu mau uso por parte daqueles que detêm o poder, que são os freios necessários para a proteção de todos.
A doutrina do liberalismo, do laissez-faire, desafiada pelo socialismo, é, por vezes associada, enquanto categoria histórica, aos interesses da classe burguesa e, por outras ao sentimento humanitário do século XIX. Esta doutrina foi brilhantemente representada por John Locke no século XVII, em seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1974), obra na qual ele destaca a importância do governo para a realização das liberdades, expressas através de leis. Nela, o autor sugere que o problema da liberdade deve ser tratado junto com o da propriedade[1]; e que o estado de natureza, condição de total liberdade, é limitado pela lei natural. Essa lei é sinônimo de razão, igualando todos os indivíduos e prevenindo para que uns não causem danos aos outros, pensamento que tem suas raízes no jusnaturalismo e na tradição cristã. Ao referir-se , porém, à aplicação da lei da natureza, posta nas mãos de cada um, John Locke (1974), alerta sobre o perigo do abuso do poder, parecendo aproximar-se da lei da guerra hobbesiana; analogia da qual escapa por considerar, ao contrário de Thomas Hobbes(1974), que a maioria dos seres humanos é boa. As más ações são, por John Locke, atribuídas a um pequeno grupo de perversos, que precisa ser controlado e, por isto ele estabelece seu Governo Civil, no qual poderes separados constituem uma estratégia capaz de evitar a corrupção e assegurar a liberdade. Nessa mesma perspectiva, James Mill, sucessor do liberalismo de John Locke no século XIX, propõe em seu Essays on Government (1978), a instituição do governo representativo, de caráter eletivo, através do qual seus executivos são impedidos de abusar do poder graças ao freio do exercício por mandato de tempo limitado.[2]
Para James Mill, todo indivíduo é propenso à corrupção pelo poder, e ao abuso dele, idéia que reside também na doutrina cristã em sua visão da decadência humana após o pecado original; predisposição da qual nem mesmo os gentlemen ingleses escapam. A partir disso, todas as questões associadas ao governo reportam-se, em sua teoria, aos meios de evitar o mau uso do poder. Este problema terá outro enfoque adiante, com John Stuart Mill , que não mais se importará com o perigo do abuso do poder por parte do governo, mas sim, por outros indivíduos. Numa sociedade sob tamanho risco, James Mill preocupa-se, então, em investigar como interesses privados podem convergir e assim propiciar a vida social; ou seja, como eles se transformam em interesses públicos, ou utilidade geral, que pode ser obtida através de uma fusão ou associação de interesses. Se entendemos que esta associação só é possível através de um ato de benevolência humana, é preciso ressaltar que esses seres, freqüentemente benevolentes na vida privada, especialmente para com aqueles mais próximos, organizam-se em facções sociais, ou facções políticas na vida pública. Eles valem-se disso para maximizar seus benefícios individuais, ou seja, realizar suas alegrias através do poder e da riqueza, coagindo para atingir seus objetivos, tornado-se, assim, velhacos. Por isso é preciso haver um freio para as instituições políticas.
Para produzir a felicidade do maior número, organizando um Estado, uma política, numa ordem pública dominada por velhacos, que desempenham os papéis de governantes e governados, deve-se instituir freios. Isto porque, se nada os impede (if nothing checks), como repete James Mill, os indivíduos agirão hobbesianamente. Dessa forma, é preciso determinar que tipo de governo é capaz de resolver esta situação, alcançando o máximo de beneficio com menores custos ou dores. O governo deve, então, aumentar o prazer do povo garantindo os meios de subsistência, ou a segurança de cada um para que os indivíduos tenham protegida pelo governo a maior quantidade possível do produto do seu trabalho, ou seja, a propriedade, o que constitui a chave da maior felicidade do maior número. James Mill questiona como é que se organiza uma ordem representativa tal que a propriedade seja garantida. Segundo ele, a massa esclarecida não destruirá a propriedade, contudo é necessário garantir a proteção da propriedade por aqueles que a perseguem.
Considerando que predominam na vida social os interesses privados, o problema desse governo parece ser, de fato, como coagir ou incentivar o indivíduo, movido por benevolências parciais ou interesses egoístas, para atingir o interesse geral. Numa primeira hipótese, os egoísmos poderiam se harmonizar automaticamente, talvez por uma identificação natural de motivos utilitários. Se isso não ocorre, o Estado pode interferir para transformar benefícios privados em benefícios públicos, através de uma legislação que promova o bem-estar coletivo, instrumento apto a desenvolver uma identificação artificial entre indivíduos de forma a maximizar o prazer ou minimizar a dor. Trata-se, então, de impulsionar o indivíduo para a utilidade social, através de punição ou de gratificação, o que constitui uma espécie de identificação artificial de interesses, o que leva ao coração do Direito Penal.
Agir por seus próprios interesses, em James Mill, significa agir de acordo com sua própria escolha; mas nem todos estão aptos a efetuar sua escolha. Há indivíduos, por exemplo, cujos interesses estão incluídos naqueles de outros indivíduos, e que podem, por isso, ser deixados de fora de uma eleição. Nesse contexto, as crianças, que não têm maturidade nem responsabilidade civil, têm seus interesses embutidos nos de seus pais. O mesmo ocorre com as mulheres, que têm os seus submetidos aos de seus pais ou de seus maridos. A despeito das limitações de idade, sexo e maturidade, impedindo que mulheres e crianças votem, o sufrágio em James Mill constitui um avanço por sua extensão, em relação ao sufrágio do proprietário, proposto por outro liberal, Benjamin Constant.[3] É preciso observar, entretanto, que não é objetivo de James Mill ampliar mais o sufrágio[4], como o fará seu filho, John Stuart Mill (1998), no seu apelo ao voto da mulher; mas o é apelar ao que ele trata como bom senso, identificando quem conduz a maioria, que não precisa ser necessariamente constituída de proprietários.
Se a metade de uma comunidade tem seus interesses embutidos na outra metade, portanto não há razão, na teoria de James Mill, para que esta população como um todo não tenha seus interesses embutidos nos de outra pessoa, num corpo representativo. A maior parte das pessoas, conforme James Mill, não conhece, realmente, seus interesses; conseqüentemente, só alguns poucos, mais preparados, detêm esta consciência e, assim, podem governar. Esses são capazes de identificar e encaminhar adequadamente os interesses do maior número, coincidindo a utilidade particular com a pública. Seu modelo não é aquele que inclui todos, mas os capacitados para representar o conjunto de indivíduos que, por sua natureza predatória, necessita de freios. Não é possível, por exemplo, governar a economia com todos, mas é possível proteger uns dos outros, através de certos freios. Em sua visão de mundo, a união de todos para governar elimina a existência do trabalho e, se não há trabalho, não há propriedade; se não há propriedade, a comunidade não existe. Este argumento assemelha-se ao de Constant que, na sua sociedade comercial, explica que aquele que busca dinheiro não tem tempo para participar dapólis e, por isto, também precisa de um governo para protegê-lo, à distância. Isso quer dizer que a sociedade de massa não se adapta ao autogoverno e que é necessário buscar uma forma de governo que inclua menos do que todos. Esta forma, contudo, pode levar à aristocracia, à espoliação, ou ao governo de um só. Logo, a necessidade do governo, em James Mill, surge da necessidade de proteger a propriedade, considerando os princípios que ele acredita reger a natureza humana, sempre em busca do poder, sob todas as formas que Thomas Hobbes (1974) já enumerou. Para ele, tudo é poder: riqueza, valor, falar bem, beleza. O poder poderá ser um fim, porque ele consiste em assegurar em favor de um a ação alheia. Dada a natureza da espécie humana, uma pessoa nunca está satisfeita com um grau menor de poder se puder obter um grau maior. Logo, a demanda de poder sobre os atos dos outros indivíduos não tem limites nem em relação ao numero de pessoas que gostaria de dominar, nem quanto ao grau de domínio sobre as ações alheias, o que é um pensar tirânico. Por isso, para James Mill, é preciso haver um limite ao desejo ilimitado de poder para que o indivíduo não tente agir predatoriamente; é preciso haver um freio. Reconhecendo a natureza humana como extremamente competitiva e predatória, o autor propõe uma nova ordem, onde o trabalho é extraído da união da comunidade como um todo, onde os seres humanos, movidos por sua própria utilidade, pelo desejo da satisfação das próprias necessidades, controlam uns aos outros e suas ações são explicadas pela boa apreciação que os outros fazem deles. Controle é imprescindível.
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