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sexta-feira, 23 de julho de 2010

A 24 de Julho de 2008, morreu Zezé Gonzaga


Zezé Gonzaga 

Começou a cantar aos 13 anos em clubes e bailes do interior de Minas, onde nasceu. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1945, depois de ganhar nota máxima no programa de calouros de Ary Barroso, e passou a atuar como cantora do rádio, nas emissoras Mayrink Veiga, Rádio Clube do Brasil e Nacional, para onde foi em 1949 por intermédio de Paulo Tapajós. Foi do grupo As Moreninhas do Ritmo, com Bidu Reis e Odaléia Sodré. Em sua carreira solo, destacam-se os sucessos "Canção de Dalila" (Victor Young/ Clímaco César) e "Óculos Escuros" (Valzinho/ Orestes Barbosa). A partir da segunda metade da década de 60, quando a bossa nova e o tropicalismo passaram a dominar o espaço das rádios, abriu uma agência de jingles, onde trabalhava como cantora e compositora. Fez algumas apresentações nos anos 80 com o grupo Cantoras do Rádio e em 1999 gravou o esmerado disco "Clássicas" ao lado de Jane Duboc, que traz de volta à cena uma das vozes mais bem-conservadas do Brasil.
A queridíssima Zezé Gonzaga nos deixou na madrugada deste 24 de julho e aqui vai a minha homenagem à pessoa gentil e corajosa que ela foi. A entrevista que você vai ler a seguir foi publicada no Jornal Musical, site editado por Tárik de Souza, em 2006. Ao invés de um minuto de silêncio, acho que ela gostaria bem mais se colocássemos um disco dela para rodar na vitrola. Vamos fazer isso? 

Aos 81 anos, completados em setembro último, Zezé Gonzaga se auto-proclama ‘apenas uma senhora que ainda canta’, título de seu primeiro álbum lançado pela gravadora Biscoito Fino, em 2002. Foi mais um trabalho idealizado por Hermínio Bello de Carvalho, com quem mantém efetiva amizade há mais de meio século. “Esse cara eu apelidei de ‘meu anjo barroco’ por causa dos cachinhos. Se eu tivesse um filho, gostaria que fosse como ele: inteligente e dono de um coração que não tem tamanho”, diz a cantora mineira, nascida Maria José Gonzaga, na pequena cidade de Manhuaçu, neta de maestro e filha da união da flautista Oraida com o luthier Rodolpho Gonzaga. “Acho que vim ao mundo com o passaporte para cantar”, brinca.

Entre tantas obras-primas gravadas em quase sete décadas de carreira, um disco se destaca. É ‘Valzinho, um doce veneno’, de 1979. Numa entrevista em fevereiro daquele ano, Hermínio resumiu em uma frase o valor do álbum que reúne o violonista e compositor Valzinho e a cantora: “Foi o disco mais importante que fiz e pelo qual esperava há dez anos”. Na época, fazia tempo que Zezé e Valzinho estavam afastados da cena musical. “Valzinho, chamado Norival Carlos Teixeira, precedeu a bossa-nova em vinte anos. Foi um incrível compositor da década de 40 e músico requisitado nas rodas de Pixinguinha, João da Baiana e Luperce Miranda, logo marginalizado e rotulado de ‘maldito’. Os problemas emocionais fizeram com que ele abandonasse o violão, para retornar neste disco”, emenda Hermínio, o produtor da bolacha, hoje um clássico da discografia brasileira.

Desde que perdeu a filha adotiva para um câncer violento no intestino, em 1999, Zezé sorve os dias entre as paredes de um apartamento na Praça da Bandeira, Zona Norte carioca. “A Maria da Penha veio morar comigo quando tinha nove anos e, depois dela, não quero dividir a casa com mais ninguém”, arremata. Visitas, é claro, são bem-vindas (“A Áurea Martins está sempre por aqui”). Solteira convicta, Zezé lembra que usou anel de noivado duas vezes. “Sabe por que nunca me casei? Só me aparecia rapaz com a metade da minha idade!” exclama. Uma das exceções foi Clímaco César, autor de ‘Inverno’ e namorado da moça em 1949, quando ela gravou seu primeiro 78 rpm, que trazia ‘Desci’, de Alcyr Pires Vermelho e Cláudio Luiz, no outro lado. A intérprete conta que estes samba-canções foram escolhidos pela gravadora. “Eu ainda não conhecia quase nenhum compositor”.

Da infância mineira, Zezé coleciona boas histórias. “Lembro que tinha sempre gente tocando lá em casa. Aos cinco anos eu já gostava de cantar. Meu pai arriscava umas canções no piano, que ele aprendeu de ouvido, e eu acompanhava. Foi assim que ele viu que eu levava jeito porque tinha ritmo e era afinadinha. Ele começava a melodia devagar e, de repente, acelerava, achando que eu ficaria para trás. Só que eu seguia sem perder o compasso”, diz. Outra história, ótima, é a do instrumento exótico que o pai luthier fez para o Luperce Miranda, batizado de ‘Raquete sonora’. “Era de corda, mas com ares de raquete: um bojo oval e um braço longo. Só tinha uma diferença: nos instrumentos de corda, primeiro faz-se o bojo, depois o braço e depois encaixa tudo. Na raquete não: O bojo e o braço eram uma coisa só. Ficou lindo, com cordas duplas. Luperce adorou”.

Na adolescência, a fama de boa intérprete correu a região da Zona da Mata e Zezé passou a ser chamada para animar as festinhas de aniversário da garotada. Aos 13 anos, recebeu um convite para ser 
crooner de um conjunto que se apresentava num clube local, o Rex. “Eu cantava direitinho nessa época e o conjunto cresceu rapidamente. A gente até fez alguns bailes em outras cidades. Toda vez que contratavam o grupo, diziam: queremos vocês, mas tem que levar a menina. A menina era eu”, recorda. Generosa e muito ligada à família, Zezé entregou o primeiro cachê, no valor de 100 mil réis, ao pai, que ganhava 75 mil réis por mês para atuar como marceneiro nos trens da Central do Brasil. “Papai era extremamente inteligente, mas não parava em emprego nenhum. Ele sempre sabia mais do que o chefe (risos) e nunca se negou a pegar no pesado, mas ganhava pouco. E eu fazia o que podia para ajudá-lo”.
Em 1942, a cantora puxou a mãe, dona Oraida, pelo braço para se inscreverem no programa do Ary Barroso. “Ganhamos cinco, que era a nota máxima. Cantei uma música que estava em voga na ocasião, ‘Sempre no meu coração’, e mamãe tocou ‘Dinorah’, do Benedito Lacerda”. Quem passava bonito pelo gongo exigente de Ary ganhava o direito de participar do ‘Escada de Jacó’, comandado por Zé Bacurau. “Eu não queria ser profissional. Pelo menos, naquele instante, não”, diz. O negócio era cantar por prazer. Em seguida, Zezé assumiu o pseudônimo de Deise Barbosa para soltar a voz no programa de calouro ‘Pescando Estrelas’, do Arnaldo Amaral. “Eu ainda morava em Minas e vinha muito ao Rio de Janeiro de férias. Inventei um nome porque não queria que ninguém me reconhecesse”.

De volta à cidadezinha mineira, foi trabalhar numa empresa de marcas e patentes, de propriedade de um amigo da família. “Daí me ligaram da Rádio Clube do Brasil, convidando a tal da Deise Barbosa para voltar ao programa do Arnaldo Amaral. Resumindo: Cantei uma música mexicana, ‘Mi oración’, mas, muito prosa que eu era, cantei em espanhol, acompanhada pelo piano do José Maria de Abreu. Fiquei em segundo lugar”. A bela interpretação lhe rendeu um contrato de 300 mil réis com a emissora. Na ocasião, ficou amiga da cantora Odaléa Sodré, filha de Heitor Catumbi, que era do grupo de João da Baiana, e formaram um duo vocal muito interessante, chamado ‘As moreninhas do ritmo’, depois simplificado para ‘As moreninhas’.

“Gostava muito de cantar com a Odaléa, mas, olha, eu era uma caipira boba, muito desconfiada. Ainda sou um pouco, mas já fui pior. Mal acabava o programa e eu ia embora, não gostava de ficar de conversa fiada nos bastidores. O pessoal sempre pedia para eu ficar naquela rodinha. E foi exatamente numa dessas que recebi um convite para procurar o Victor Costa, diretor da Rádio Nacional. A Odaléa já era da Nacional e ele também me queria no elenco. Fui ver isso de perto. Qual não foi a minha surpresa quando o elevador da Nacional abriu e esbarrei com o cantor Nuno Roland. Ele veio falar: Já sei, você é a Zezé Gonzaga. O seu nome está muito badalado aqui na rádio”. O contrato com a antiga emissora só vencia em dezembro e o executivo da Nacional lhe ofereceu um salário de 2.500 réis. “Mas eu não tinha noção de dinheiro e respondi um ‘está bem’ meio seco”, lembra, às gargalhadas.

Ainda sem contrato, Zezé foi escalada para cantar na rádio dali a poucos dias. Entraria num horário vago, entre a novela e o programa ‘Balança, mas não cai’. “Cantei duas músicas sem saber que era, na verdade, um teste. Cantei direitinho, fui muito aplaudida. Victor reuniu os jurados, entre eles o Paulo Tapajós, e perguntou se todos estavam de acordo. Disseram que sim e ele anunciou: ‘Dona Zezé Gonzaga é a mais nova contratada da Rádio Nacional’”. Zezé recorda que a Rádio Clube praticamente rasgou o contrato anterior e a deixou livre para trabalhar na concorrente. Isso foi numa quinta-feira de 1948. “No sábado, eu já estava cantando no programa do César de Alencar”.

A Rádio Nacional foi uma grande escola para Zezé, na época uma jovem de 22 anos. “Para mim, valeu muito, mas vi muita gente perder um dinheirão lá. Era o seguinte: Você tinha que chegar, no máximo, 15 minutos antes da hora que estava programado para entrar no ar. Se atrasasse, não cantava e ainda pagava uma multa”. Zezé era muito responsável e nunca chegou depois do horário combinado. “Por ter facilidade para aprender, quando faltava um, me chamavam para fazer o número daquela pessoa. Eu dava uma olhada na partitura e cantava ao vivo. Ficava um primor. Uma das cantoras que eu mais substituí foi a Nora Ney”.
Zezé: “Já estou pagando hora extra na vida”

No final dos anos 1950, Zezé gravou discos infantis pela fábrica ‘Carrossel’, sob a produção de Paulo Tapajós. Era um ensaio para a Tape Produções, que ela abriu poucos anos adiante em sociedade com o maestro Cipó e com Jorge Abicalil. Juntos, criaram um punhado de jingles, vinhetas e trilhas sonoras, entre elas o bem famoso tema de abertura do Projeto Minerva, apresentado pela Rádio MEC. “Este fizemos eu e o Luiz Carlos Saroldi. Foi veiculado por muitos e muitos anos”. Zezé evoca estas lembranças com uma dose extra de leveza, mas também coloca a boca no trombone: “Eu nunca gostei de amolar os outros e sempre esperei pelo momento que não veio. Agora não interessa mais, já estou pagando hora extra na vida”.

Outro dia, a produção do ‘Fantástico’, da Rede Globo, telefonou para a cantora a fim de convidá-la para participar de um quadro do programa dominical, um dos mais antigos da emissora. “Ah, tive que dizer à menina: Desculpe, minha filha, você não tem culpa, mas não aceito fazer parte deste programa porque em 64 anos de carreira ninguém nunca cometeu a delicadeza de me chamar para fazer um número. Obrigada, mas não vou. Não tenho nada de importante para falar sobre a minha carreira. Aliás, a mídia nunca me prestigiou como eu vejo prestigiar outros artistas, embora eu sempre tenha feito o meu trabalho com a maior dignidade possível”, desabafa.

O coração de Zezé andava descompassado e em março de 2006 ela implantou um marca-passo. “Fumei a vida toda, sem nunca tragar. Tenho os pulmões limpinhos, mas quando comecei a ficar sem ar, os médicos cogitaram que fosse um problema respiratório. Cheguei a tomar remédios fortes e caros para uma doença que não tinha. Até ser levada pela Áurea para um cardiologista e ele descobrir qual era o meu problema na verdade”, conta Zezé, homenageada na véspera do seu aniversário de 80 anos pela Escola Portátil de Música, na Uni-Rio. Zezé recebeu o diploma de Mestra Honorária da Canção Brasileira depois de assistir junto aos alunos às imagens dela acompanhada ora pelo violão de Raphael Rabello ora pelo piano de Radamés Gnattali, de quem era uma das intérpretes prediletas.

Falar de Zezé Gonzaga também é evocar o sucesso ‘Ai, ioiô (Linda flor)’, de Henrique Vogeler, Luiz Peixoto e Marques Porto. Em 1956, a intérprete ganhou um disco de ouro pela recriação deste samba, que traz uma das melodias mais refinadas do cancioneiro popular. “Era uma boa época. Os autores faziam grandes músicas para nós. Hoje, não. Hoje os autores fazem e gravam eles mesmos. Você não é mais lançador de sucessos. Acho isso ruim demais. Qualquer um diz que é cantor, mas não posso falar mal porque vão dizer que sou recalcada”. Entre seus passatempos favoritos está jogar buraco contra ela mesma. “Zezé é a mão esquerda e ‘ela’, a mão direita”, diz, enquanto distribui as cartas. “Mas eu brinco direitinho e não roubo, não. Podia enganar. Ninguém está vendo, não é?”, ri.

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