D. Manuel II, o último rei de Portugal (I Parte)
«Era uma vez um príncipe que não pensava ser rei» mas que a tragédia levou ao trono e que a propaganda republicana fez um «fraco, mal preparado, beato e dominado pela mãe».«Não sei escrever história com veneno mas com tinta», disse D. Manuel a António Ferro, o jornalista que o entrevistou no exílio, para o Diário de Notícias, em 1930. No centenário da República parece-nos justo fazer história «com tinta» e recordar o último rei de Portugal e «um dos mais eruditos».
Pelas três horas da manhã do dia 15 de Novembro de 1889, nasceu Manuel Maria Filipe Carlos Amélio Luís Miguel Rafael Gonzaga Xavier Francisco de Assis Eugénio de Bragança Orléans Sabóia e Saxe-Coburgo-Gotha, duque de Beja. Na manhã seguinte, em Lisboa, uma salva de 21 tiros anunciou a boa nova à população, o governo chefiado por José Luciano de Castro decretou três dias de gala e iluminações. Por essa altura fica a saber-se da queda do regime imperial e da proclamação da República no Brasil.
No mesmo ano, no mesmo mês, o governo britânico dá o primeiro passo para um Ultimatum que chega em Janeiro de 1890 e que acabará por contribuir decisivamente para o aumento da agitação e propaganda republicanas.
D. Manuel teve uma educação convencional e influenciada, é consensual, pela profunda religiosidade da mãe. Em Maio de 1899, D. Manuel faz a primeira comunhão e inicia uma prática religiosa assídua e piedosa que mantém até ao fim da vida.
Uma vida inevitavelmente marcado por um acontecimento, a morte do pai e do irmão diante dos seus olhos. Na primeira pessoa: «Chegámos ao Terreiro do Paço. Na estação estava muita gente da Corte e mesmo sem ser. Conversei primeiro com o Ministro de Guerra, Vasconcelos Porto, talvez o ministro de quem eu mais gostava no Ministério de João Franco. Disse-me que estava tudo bem. Esperámos muito tempo; finalmente chegou o barco em que vinham meus pais e o meu irmão. Abracei-os e viemos seguindo até à porta onde entrámos para a carruagem os quatro. No fundo a minha adorada Mãe dando a esquerda a meu pobre Pai. O meu chorado Irmão diante do meu Pai e eu diante da minha Mãe». E prossegue, «Quando de repente já na rua do Arsenal olhei para o meu queridíssimo irmão vi-O caído para o lado direito com uma ferida enorme na face esquerda de onde o sangue jorrava como de uma fonte! Tirei um lenço da algibeira para ver se lhe estancava o sangue: mas que podia eu fazer? O lenço ficou logo como uma esponja».
Rei inesperado
Logo nessa noite, a 1 de Fevereiro de 1908, assinava o seu primeiro documento como rei, «Portugueses! Um abominável atentado veio oprimir com a maior amargura o meu coração de filho amantíssimo e de irmão extremoso e enlutar a Família Real...»
Os tempos que se seguiram foram igualmente difíceis. A instabilidade governativa e a crise do regime foram a combinação explosiva que acabaria por rebentar nas mãos do jovem monarca, que uma vaga ideia de uma «monarquia nova» e uma «benévola expectativa» não foram suficientes, porque para se voltar ao tempo de Fontes... faltava um Fontes, e «aqueles a quem o rei decepcionava ameaçavam logo com revoluções».
Ainda que os republicamos se preocupassem com a divulgação das suas ideias - a acção divulgadora do Partido Republicano Português (PRP) fez-se através dos muitos jornais que dominava e na organização de grandes manifestações populares, comícios, festas, marchas de protesto, a verdade é que para a maioria ser republicano era estar contra a Monarquia, contra a Igreja e os Jesuítas e contra a corrupção política dos partidos tradicionais. A propaganda republicana sobe de tom nos jornais e na rua e dentro do PRP o sector revolucionário não se cansa de defender a luta armada para tomar o poder.
E o ataque final ao regime, depois de algumas tentativas denunciadas, começa nos primeiros dias de Outubro. No dia 3, o Governo, e mais uma vez, é informado que se prepara um golpe. Teixeira de Sousa dá ordens para que as tropas da Guarnição de Lisboa permaneçam nos quartéis.
Duas notícias vieram precipitar os acontecimentos: o assassinato de Miguel Bombarda e a provável saída dos navios do Tejo - a acção dos marinheiros será decisiva no golpe. Os chefes e militares republicanos reuniram-se de emergência num terceiro andar do nº. 106, da Rua da Esperança. Cândido do Reis é peremptório: «A Revolução não será adiada»; por essa altura também Machado do Santos e alguns Carbonários, iniciavam, por sua conta e risco, a revolução.
O rei jogava bridge no Paço das Necessidades quando se ouviu o primeiro tiro de canhão, dirigiu-se ao telefone, mas a linhas já estavam cortadas; D. Manuel ainda consegue comunicar com D. Amélia que está em Sintra, na Pena. Pouco depois chegam ao Paço as tropas para vêm defender o rei.
Na manhã do dia seguinte, cerca das nove horas, o primeiro-ministro pede ao Rei para que deixe as Necessidades e se refugie em Sintra ou Mafra, mas D. Manuel II recusa. «Vão vocês, se quiserem, eu fico. Desde que a Constituição não me marca outro papel, senão o de me deixar matar, cumpri-lo-ei». Ao meio-dia, o Palácio é bombardeado a partir dos cruzadores Adamastor e São Rafael. O Rei desce para o Jardim da Rainha e refugia-se numa pequena casa do parque.
Passadas algumas horas, o monarca acaba por deixar o Paço, cedendo à pressão do governo que lhe pede para libertar as tropas que o defendiam e que são necessárias no Rossio e na Rotunda para combater os revoltosos; e aos apelos da mãe que não estava disposta a perder o filho que lhe resta. Pensa-se que terão sido os apelos de D. Amélia que dissuadiram o monarca de vestir o uniforme militar e a colocar-se à frente das tropas.
O Rei deixa o poder
O Rei sai das Necessidades pela duas da tarde, do dia 4. D. Manuel chega a Mafra sem problemas, mas aí descobre que não tem quem o proteja. Ao final da tarde chegam também a Mafra a rainha D. Amélia e a sogra, a Rainha D. Maria Pia.
Em Lisboa, no dia 5 de Outubro, um cessar-fogo inesperado provocado pelo encarregado de negócios alemão, precipita os acontecimentos e, na prática, denuncia as fragilidades militares das forças fiéis ao regime. Paiva Couceiro é, por esta altura, uma figura quase quixotesca. Machado do Santos desce da Rotunda ao Rossio, com uma turba de populares gritando «vivas à República!», e dirige-se ao quartel-general da Monarquia onde consegue a rendição. Pouco depois, a República é proclamada no edifício da Câmara Municipal.
Em Mafra, após uma notícia difícil e sem notícias, o monarca desperta para um país onde se espalham telegramas que anunciam um novo regime e uma nova bandeira.
Sem alternativa, o rei parte de Mafra para a Ericeira onde já está fundeado o iate D. Amélia, que viera de Cascais onde recolheu infante D. Afonso.
A bordo, o Rei retirou-se para o camarote e numa folha com timbre do iate real escreveu ao presidente do Conselho do seu Governo: «(...) Tenho a convicção de ter sempre cumprido o meu dever de Rei em todas as circunstâncias e de ter posto o meu coração e a minha vida ao serviço do meu País. Espero que ele, convicto dos meus direitos e da minha dedicação, o saberá reconhecer! Viva Portugal! 5 de Outubro de 1910». A Carta demorou meses e meses para ser conhecida, e foi uma cópia.
Inicialmente o Rei ainda pensou seguir para o Porto e aí reunir-se com os apoiantes do regime, mas perante a incerteza e aconselhado a salvar a família real, dirigiu-se para Gibraltar. A rainha D. Amélia soluçava e dizia, profética: «Do exílio não se volta!»
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