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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Damião de Góis nasceu em Alenquer em 2 Fevereiro de 1502

 

Damião de Góis nasceu em Alenquer em Fevereiro de 1502, sendo filho de Rui Dias de Góis e de sua quarta esposa, Isabel Gomes de Limi. Foi sempre muito chegado ao seu irmão Fructos de Góis, filho da segunda mulher de seu pai, Filipa de Góis.

Possivelmente por dificuldades económicas, Rui Dias colocou os seus filhos ao serviço do Paço, primeiro Fructos e depois Damião. Faleceu logo a seguir, em 30 de Novembro de 1513. Nos primeiros tempos, Damião desempenhou as funções de pajem de lança, depois foi moço de câmara.

Sabe-se que D. Manuel tinha a preocupação de educar as crianças que prestavam serviço na Corte. Sem dúvida, Damião estudou ali Gramática, Latim e Música. Na realidade, o estudo do Latim iniciava-se logo na meninice; quando se ia para a Universidade aos 14 ou 15 anos, já tinha de se ler e escrever Latim. Mais adiante falarei dos conhecimentos de Latim de Damião de Góis; acho que, quando ele diz que iniciou o estudo do Latim em 1529, quer dizer apenas que começou a estudar a língua a sério, mas saiu de Portugal já com conhecimentos da língua.

Certamente apaixonou-se sobretudo pelo estudo da música, pois mais tarde revelou conhecimentos com alguma profundidade, como provam as composições dele que chegaram até nós.

Em 25 de Fevereiro de 1514, chegou à Corte, numa nau vinda da Índia, Mateus, embaixador da Rainha Helena, Regente da Etiópia, na menoridade do bisneto de seu marido, conhecido por Imperador David (reinou de 1508 a 1540). Era portador de uma carta escrita em 1509 que propunha uma aliança militar contra os infiéis e o matrimónio entre príncipe das duas nações. Vigorava então na Etiópia, conhecida como a terra do Preste João, um certo Cristianismo que porém, tinha práticas diferentes das Católicas. No entanto, queriam ser reconhecidos pelo Papa. O embaixador ficou em Lisboa mais de um ano. Embarcou de regresso à Índia em Abril de 1516 com o novo Governador da Índia, Lopo Soares de Alvarenga e Duarte Galvão (1447-1517), novo embaixador português à corte do Imperador David. Com a embaixada, ia também o Padre Francisco Álvares. Duarte Galvão morreu no decurso da viagem na Ilha de Comorão.

Em 1516, veio a Lisboa o polaco João Tarnowski (Tarnóvio) (1478-1561) que, juntamente com outros dois nobres polacos, foi armado Cavaleiro por D. Manuel. Mais tarde, Damião de Góis encontrou-o na Polónia.



EUROPA



Entretanto, faleceu D. Manuel I em 13 de Dezembro de 1521. Góis continuou em funções no Paço durante algum tempo, mas depois o Rei D. João III enviou-o para a Flandres, nomeando-o escrivão da Feitoria de Antuérpia, de que era Feitor João Brandão. Era ali também escrivão Rui Fernandes de Almada, que passou a Feitor em 1525. Ao contrário do que refere Maximiliano Lemos, havia ali em serviço mais do que um escrivão.

Partiu ele numa nau de Diogo Fernandes Faria, que integrava uma armada capitaneada por Pedro Afonso de Aguiar. Governava então a Flandres Margarida de Áustria, tia de Carlos V, que veio a falecer em 1530, sendo substituída por Maria de Habsburgo, viúva de Luis II, da Hungria, que governou a região praticamente até à sua morte em 1558.

Embora o seu tempo fosse dedicado sobretudo aos negócios da Feitoria, dedicou-se certamente a outras actividades. Como já referi, não é de crer que apenas em 1529 tenha iniciado o estudo do Latim. Foi seu professor de Latim e provavelmente também de música, Cornelis de Schrijver (1482-1558), que traduzia o seu sobrenome para Grapheus ou Scribonius, o qual, acusado de luteranismo, abjurara em 1522 e estivera um ano preso. Perdeu o seu emprego público na Câmara Municipal e estava precisando de ajuda financeira que lhe foi proporcionada por Damião de Góis. Góis sugere que teria sido ele a enviar ao irmão Joahnes Grapheus, tipógrafo, o manuscrito original da Legatio Magni Indorum Imperatoris Presbyteri Ioannis, sem o seu consentimento para o imprimir, mas, na minha opinião, isso não passa de uma encenação. Foi sem dúvida Damião de Góis quem pagou a edição e mesmo com um bónus relativo ao poema de Cornelis que este lhe dedicou no livro, Pictura illustris Damiani de Goes. Note-se aliás que Góis nunca poderia ter iniciado o estudo do Latim em 1529, pois nesse ano partiu em missão e precisava de conhecer a língua (era o Inglês da altura).

Ao serviço da Feitoria e da Coroa, partiu para ir à Alemanha e a seguir à Corte de Segismundo, Rei da Polónia. As suas não eram missões diplomáticas, mas sim missões comerciais ao serviço da Feitoria. O centro da sua actividade foi Dantzig (ou Gdansk), na Prússia. Dirigiu-se depois para Vilna, hoje Vilnius. Teve de regressar a Dantzig e depois passou ainda por Poznan, tendo como destino final Carcóvia. Conheceu aí a Princesa Hedwiges, filha do Rei Segismundo. O Chanceler Christophe Szydlowiecki pôs-lhe a hipótese do casamento desta com o Infante D. Luis, irmão de D. João III, o que não se concretizou. Junto da princesa, encontrou João Tarnowski seu conhecido de Lisboa, catorze anos antes, agora fidalgo e grande comandante militar. Ignoram-se as datas exactas, mas a missão, cuja finalidade se desconhece, foi relativamente curta. Regressou depois a Antuérpia no início do 2.º semestre de 1529 e dedicou-se a estudar Latim a sério com Corneliis Grapheus.

A segunda viagem de Damião de Góis é mais importante, e também mais perigosa para ele, porque o pôs em contacto com os mentores da reforma protestante.

Faço um parêntese para referir o interesse (ou devo dizer a curiosidade?) de Damião de Góis pela reforma religiosa. É sabido que no primeiro quartel do Sec. XVI era sentida por todos a necessidade de uma reforma no seio da Igreja Católica. À reforma protestante de Martinho Lutero seguiu-se a contra-reforma do Concílio de Trento (1545-1563) que não deixou de ser também uma reforma. Por volta dos anos 30 do Século, ainda a Igreja Católica não tinha reagido convenientemente à iniciativa protestante. O assunto era pois de actualidade e compreende-se que Damião de Góis tivesse interesse em conhecer Lutero e os seus apaniguados.

No ano de 1531, D. João III mandou Góis à Dinamarca, onde reinava Frederico I, que encontrou na Corte em Schleswig (hoje na Alemanha). O País era luterano, tal como a cidade de Lubeck para onde foi a seguir. Segundo Jean Aubin, tratava-se de desbloquear uma compra importante de madeiras destinadas a construir barcos, que deveria ser transportada por um navio chamado Michel, de que alguns se queriam apropriar. Em rota, o navio fora apreendido pelos Dinamarqueses.

Em Lübeck, Damião de Góis teve a (infeliz) ideia de se desviar um pouco do seu caminho para ir a Wittenberg conhecer os arautos da Reforma, Lutero e Melanchthon, com quem jantou (3 de Abril de 1531). Mas antes estivera a ouvir um sermão de Lutero, que não compreendeu por ser em alemão, excepto algumas citações latinas. Esteve umas horas a conversar com ambos em casa e eles defendiam naturalmente a Reforma. Melanchthon insistiu que ele fosse a sua casa para mostrar como vivia pobremente, o que Damião de Góis constatou. Esteve dois dias completos em Wittenberg e partiu terça-feira, 5 de Abril de 1531 para Poznan e daí para Cracóvia. Daqui partiu para Dantzig, onde se demorou alguns meses. Ali estaria ainda quando em Marienwerder (hoje, Kwidzyn), encontrou Paulo Spreter ou Speratus (1484-1551) Bispo Evangélico da Pomerânia que no dia seguinte (12-9-1531) lhe enviou um bilhete amistoso (carta B-V). Reencontrou também Jan Tarnowski. Ficou bastante tempo em Dantzig, não devendo ter regressado senão nos últimos meses do ano.

Em Dantzig, travou forte amizade com o Bispo de Upsala, Johannes Magnus Gothus (1488 – 1544) e seu irmão Olaus Magnus (1490-1557) (na sua língua, Jöns e Olof Mansson). O Rei Gustavo Vasa expulsou-o da sua diocese e da Suécia, aderindo à reforma luterana. O Bispo viu-se praticamente condenado a viver de esmolas. À sua morte, sucedeu-lhe à frente da diocese seu irmão, que tomou parte no Concílio de Trento, mas nunca chegou a exercer o cargo. Damião de Góis encontrou-os em Dantzig e contou-lhes a história das relações de Portugal com a Etiópia, da lenda do Preste João e da troca de embaixadores entre os dois países. Os suecos contaram-lhe o drama dos Lapões, os quais, de feitio reservado, se deixavam explorar por gente gananciosa. Instigaram Damião de Góis a escrever sobre os dois assuntos, tarefa a que ele se dedicou com o entusiasmo, esperando certamente a chegada a Antuérpia para pedir a Cornelis Grapheus, que corrigisse e melhorasse o seu Latim no livro.

Foi assim publicada a Legatio Magni Indorum Imperatoris Presbyteri Ioannis, precedida da carta A-I e da carta B-VI, de Cornelis Grapheus a seu irmão tipógrafo Johannes; os textos sobre a Etiópia são seguidos do texto De Pilapiis, que é a carta A-II; termina com dois poemas de Cornelis dedicados a Damião de Góis, o primeiro, um retrato em verso, o segundo um poema de boas-vindas, “Clarissimo Damiano Goi, Lusitano, eius Nationis in Antuerpia Consuli, Regio nomine a Scythis redeunti”. Também André de Resende lhe escreveu um poema de boas-vindas, mais tarde incluído com os de Grapheus nos Aliquot Opuscula de 1544.

A Legatio foi traduzida para Inglês pelo filho de Thomas More, John More e editada em 1533 em Londres (ver edição em fac-simile, de 1967 na bibliografia).

Em Dezembro de 1531, esteve Damião de Góis ocupado na organização dos festejos da celebração do nascimento do Infante D. Manuel, filho de D. João III, ao mesmo tempo que o embaixador português, D. Pedro de Mascarenhas fazia uma grandiosa recepção ao Imperador Carlos V. Foi representada uma peça de Gil Vicente, denominada Jubileu de Amores (hoje perdida), que chocou alguns assistentes por criticar a venda das indulgências. Sobre estes acontecimentos, compôs André de Resende (1500 – 1573) o seu poemaGenethliacon, onde destaca o papel de Damião de Góis. No seu livro Diarii, tomo LV (e não 25, como diz o texto de Jean Aubin) faz também Marino Sanuto uma detalhada descrição dos acontecimentos nas colunas 414 a 420.

No mês de Janeiro de 1532, faleceu sua mãe, Isabel Gomes de Limi.

Nestes primeiros meses de 1532, Góis abranda o trabalho na Feitoria, indo matricular-se no Colégio Buslidiano ou Trilingue em Lovaina. Trava relações com Juan Luis Vives (1492 – 1540) e com Konrad Gocklenius (1455 – 1539), professor de Latim no colégio. Frequentou o Colégio durante alguns meses. Mas não abandonou totalmente a Feitoria. Em 22 de Julho de 1532, o Feitor Rui Fernandes de Almada enviou os escrivães Jorge de Barros e Damião de Góis para serem recebidos em audiência pela Rainha Maria da Hungria (governava os Países Baixos desde 1530) e o seu Conselho para pleitearem pela libertação de Diogo Mendes, que havia sido preso a no dia 19 anterior.

Quem saiu de Lovaina nessa altura, foi André de Resende, eventualmente assustado com a proibição pela Igreja dos livros de Erasmo. Ele próprio publicara o texto Erasmi encomium que não agradou aos meios religiosos.

Góis conheceu também por essa altura em Lovaina a Rutgerus Rescius (1497 – 1545), simultaneamente Professor de Grego e Tipógrafo. Ficou mesmo hospedado em casa dele.

Entretanto diz Damião de Góis que adoeceu da vista, sendo obrigado a abandonar os estudos. Tem então uma brilhante ideia: procurando a celebridade, nada melhor para isso do que conviver com um dos homens mais famosos do século, Desidério Erasmo, de Roterdão. Pediu a Rutgerus Rescius uma carta de apresentação (que desapareceu) e apresentou-se em casa dele, em Friburgo de Breisgrau. Isto aconteceu perto do final do mês de Abril de 1533, como muito bem deduz Amadeu Torres. Erasmo convidou-o para jantar e demonstrou simpatia por ele; já na casa dos setenta, gostava de conviver com gente nova, como o era, Damião de Góis, então com 31 anos. Damião de Góis ofereceu-lhe um exemplar da Legatio. Ao partir, Erasmo deu-lhe uma carta (B-VII-2805) para Bonifácio Amerbach (1495 – 1562), pedindo-lhe que a entregasse ao destinatário. Este professor de Direito era o grande orientador nos aspectos práticos da vida de Erasmo: amigo, conselheiro, depois herdeiro universal no testamento de Erasmo. Era ainda homem novo e não se deve ter entusiasmado muito com Góis. Tudo indica que, se lhe dava atenção, era unicamente por consideração para com Erasmo. Este tem medo que Góis lhe seja pesado e diz isso mesmo na carta B-VII-2805.

A amizade da parte de Erasmo tinha dois interesses por trás: o primeiro era que ele queria companhia, sentia-se doente e sozinho. O segundo, mais corriqueiro e material era que ele tinha ainda esperança de arrancar uma dádiva em contado, de D. João III, que lhe havia falhado. O seu amigo Erasmo Schets (? – 1550) sugerira-lhe que dedicasse uma obra a D. João III, o Rei de Portugal, pois isso seria certamente recompensado principescamente. Afinal, Juan Luis Vives dedicara-lhe um pequeno tratado, De tradendis disciplinis e recebera 200 ducados, um gomil de prata com incrustações em ouro e uma mesa de ébano. Erasmo deixou-se convencer. Pediu informações a Rui Fernandes de Almada (Rodericus Fernandius nas cartas) e escreveu uma longa dedicatória ao Rei como prólogo às Chrysostomi Lucubrationes (carta 1800). Mas não se coibiu de acusar os portugueses de monopolistas da pimenta (linhas 41-44) e isso caiu muito mal em Lisboa. Queria ele pedir a Damião de Góis que o desculpasse junto de D. João III, a ver se ainda vinha a desejada compensação. Este “romance” (descrito por Marcel Bataillon, mas não exaustivamente) é narrado com muitos pormenores nas cartas 1647, 1681, 1682, 1750, 1758, 1769, 1783, 1800, 1849, 1866, 2243, e 2370, todas de ou para Erasmo Schets, com excepção da 1800 que é o prólogo adulatório (este traduzido por Ana Paula Quintela F. Sottomayor). Na carta 1866, está ele muito satisfeito do trabalho feito, esfregando as mãos à espera do agradecimento: “Librum Lusitaniae regi dicatum gaudeo vobis placere. Si ille tam liberalis fuerit in dando quam ego fui in laudando, res pulchre habebit.” Fico satisfeito que vos agrade o livro dedicado ao Rei de Portugal. Se ele for tão liberal a dar, como eu fui a louvá-lo a ele, resultará uma coisa bonita. Na carta 2370, está a desilusão: “Não lhes agradou que eu falasse em monopólio”.

Depois do jantar com Erasmo, Góis dirigiu-se a Basileia. Disse mais tarde na Inquisição que ali encontrou e conheceu dois protestantes: Sebastião Munster (1488 – 1552) e Simão Gryneus (1494 – 1541), professor de filosofia. Foi depois ter com Amerbach, a quem entregou a carta de Erasmo. Pouco tardou em Basileia, regressando a Lovaina ainda em Maio de 1533.

Poucas semanas depois, recebeu de Lisboa um pedido inesperado do Rei para que regressasse a Lisboa, pois queria nomeá-lo para um cargo importante, o de Tesoureiro da Casa de Índia. É isso que ele comunica a Erasmo na carta A-IV-2826, expedida de Antuérpia, datada de 20 de Junho. Na sua relação com Erasmo, Góis comporta-se com um bom pedaço de impertinência. Diz-lhe sem rodeios que em Lovaina consta que ele, Erasmo, é favorável ao divórcio de Henrique VIII, Rei de Inglaterra. Pede sugestões para responder aos que o criticam.

Pede a ajuda de Erasmo para uma campanha a favor dos Lapónios, para que sejam evangelizados e se libertem da opressão dos poderosos.

Depois, desejoso das boas graças de Erasmo, envia-lhe um presente: um copo de prata dourado.

Já antes escrevera a Erasmo outra carta que se perdeu. Nela falava da relação mútua deles, da personalidade de Amerbach e de um incêndio nos arredores de Friburgo.

Erasmo respondeu a ambas as cartas com a carta B-X-2846, de 25 de Julho de 1537. É possível que nesta data, Damião de Góis já estivesse a caminho de Portugal.

Erasmo lamenta tê-lo recebido tão friamente. Garante-lhe a sua amizade. Agradece-lhe o copo que ele deu de presente e entregou a Schets. Nega que tenha tomado partido na questão do divórcio de Henrique VIII. No que respeita à Lapónia, mostra boa vontade, mas receia não conseguir escrever para a próxima feira, até porque tem problemas com o impressor. Refere-se ao incêndio. Garante a fidelidade de Amerbach. Felicita Damião de Góis pela nomeação para um cargo de importância. Termina a carta pedindo a Damião de Góis que transmita o seu pedido de desculpas ao Rei de Portugal, prontificando-se a reparar o erro cometido, do modo que lhe for pedido.

Por esta altura, Góis deve ter conhecido Georg Schuler ou Georgius Sabinus, de Brandenburgo (1508-1560), versado em Retórica, Latim e Grego, poeta novilatino prestigiado, que era genro de Melanchthon. Ficaram amigos, tendo ele dedicado a Góis dois poemas, um inserido nos Aliquot Opuscula de 1544, outro por ele publicado nos seus Poemata.

Em Julho de 1533, ao atravessar a França, Góis visita em Paris Fr. Roque de Almeida, que daí a tempos mudaria o nome para Jerónimo de Paiva (nome com que se apresentou aos Reformadores), seu amigo, até porque era cunhado de João de Barros. Fr. Roque pediu-lhe uma carta de apresentação para Melanchthon, que ele acedeu a escrever.

Não se demorou Damião de Góis muito tempo em Portugal, só quatro meses, diz ele na dedicatória da tradução do Catão maior. Houve algo que correu mal, mas ele não nos diz o quê. Aliás o pessimismo ali expresso, contrasta com a descrição da estadia feita no processo da Inquisição, que assim soa a menos verdade.

Na verdade, a declaração dele aos inquisidores “El-Rei… me perguntou se o (a Erasmo) poderia eu fazer vir a este Reino para se dele servir em Coimbra” soa a balela, tendo em vista não apenas a idade, mas também a fama de herético que Erasmo tinha em Portugal.

Em Lisboa encontrou um embaixador do negus da Abissínia, um Bispo chamado Sagaza-Ab. Quando o Imperador David soube da morte de D. Manuel I, e da sucessão de D. João III, decidiu enviar uma Embaixada a Lisboa, retribuindo a que o Rei lhe enviara em 1520, chefiada por Rodrigo de Lima e designou Sagaza-Ab, como seu Embaixador. Rodrigo de Lima e o Embaixador apenas chegaram a Lisboa a 24 de Julho de 1527. D. João III não mostrou interesse nas relações com a Etiópia e o Embaixador foi ficando por Lisboa. Em 1532, foi enviado a Roma D. Martinho de Portugal com o P.e Francisco Álvares para notificar o Papa da conquista que o cristianismo fizera de mais um País cristão. Mais tarde, foi considerado que era mais judaísmo que cristianismo.

Sagaza-Ab foi deixado em Lisboa e foi assim que o encontrou Damião de Góis. Este pediu-lhe que escrevesse e lhe enviasse um relato pormenorizado acerca da fé e dos costumes dos abexins. De facto, ele enviou-lhe o texto para Pádua em 1534. Góis traduziu-o para Latim e constitui a 2.ª parte do livro Fides, religio, moresque Aethiopum sub imperio Preciosi Ioannis. O pobre Embaixador nunca mais regressou à sua terra.

Damião de Góis decidiu rejeitar o cargo que o Rei lhe oferecia, por razões que não conseguimos adivinhar, mas não o disse claramente a D. João III. Partiu em romaria a Santiago de Compostela e de lá escreveu uma carta ao Rei a comunicar a sua decisão.

Na carta B-XIV-2913, de 11 de Março, Erasmo diz a Schets ter recebido uma carta de Damião de Góis remetida de Portugal, que se perdeu. Erasmo responde a Góis com a carta B-XV-2914, intitulando-o Tesoureiro do Rei de Portugal, pensando que ele aceitara o cargo. Recebera outra carta de Portugal de alguém que não conhecia e que lhe escrevera por incitação de Damião de Góis. Difícil identificar de quem se trata (a carta não sobreviveu), embora haja quem diga ser Jorge Coelho. Erasmo elogia Resende e o seuGenethliacon e diz que gostaria de ter notícias dele. Assegura a Góis a amizade de Amerbach e também a de Henrique Glareanus (1480-1563), o teórico musical que, portanto, nessa altura, já era dos seus conhecimentos. Desculpa-se na questão dos Lapões, culpando o impressor, mas diz ter traduzido para alemão a carta de Góis ao Bispo de Upsala. Termina a carta dizendo “A gota da minha mão diminuiu, o suficiente para que eu a custo possa assinar” (tradução diferente da de A. Torres).

Logo a 13 de Março já Erasmo sabia que Góis recusara o cargo e estava de regresso (carta B-XVI-2916, a C. Grapheus). Damião de Góis já andava perto. A 9 e 10 de Março estivera em Basileia pedindo coisas a Amerbach (Carta B-XVII deste a seu irmão): “Cur nunc non libellum Erasmi De morte accipis, Dn. Damianus de Goes, regis Lusitaniae thesaurarius, qui me hodie per totum diem detinuit…” - O facto de não receberes agora o de Erasmo Acerca da Morte, deve-se ao Senhor Damião de Góis, Tesoureiro do Rei de Portugal, que hoje me deteve durante o dia inteiro. Note-se, por um lado, que Góis não informou Amerbach que tinha recusado o cargo e, por outro, que Amerbach se mostra enfastiado, o que revela falta de intimidade e desconsideração mútua.

A carta de Erasmo B-XIX-2919, de 11 de Abril de 1534, revela que ambos já haviam acordado uma estadia de Góis em casa do primeiro; está entusiasmado, chama-o de clarissimo iuvene, isto é, ilustríssimo jovem. Diz ter recebido uma carta dele, que não chegou até nós.

Poucos dias depois, Damião de Góis instalou-se em casa de Erasmo. A 23 de Abril, este escreve a Schet, anunciando a estadia doegregius iuvenis (carta B-XX-2924, P.S.). Por causa da saúde, não comem juntos.

Por volta do fim de Maio, ou princípios de Junho, já Damião de Góis decidira partir para Itália, para estudar em Pádua. Na carta B-XXIV, de 10 de Junho, Conrado Glocklenius (1455-1539), Professor no Colégio Trilingue, estranha essa vontade súbita de partir para Itália; diz-lhe que não tem conhecimentos em Pádua para o poder recomendar; diz-lhe que peça a Erasmo. Esta carta deverá ter sido escrita em resposta a uma de Góis, que se perdeu.

Na carta B-XXV-2944, de 11 de Junho, de Erasmo a Schets, diz ele: “Eu sempre supus que ele (Damião de Góis) tivesse deixado a pátria com boa graça dos seus. Aconselhei-o, no entanto, a obedecer os conselhos dos amigos, o que aliás vai fazer”. Estas frases fazem duvidar da veracidade do depoimento feito na Inquisição (pags. 74 e 75 de Inéditos Goesianos,II); nem tudo teria corrido tão bem como ele disse aos Inquisidores.

Numa carta (B-XXVIII-2954), escrita em 27 de Julho de 1534 por Ulrico Zásio (1461-1535), professor de Direito em Friburgo, este diz a Erasmo que não deseja receber Damião de Góis. “Que fique em casa”. Também tinha já 73 anos.

Sobre a estadia de Góis em casa de Erasmo, tem interesse a carta B-XXXVIII-2997, de 21 de Fevereiro de 1535, de Erasmo a Schets. Queixa-se de um criado, John Clauthus, que enviou a Inglaterra e depois faleceu em 10 de Setembro de 1534. Diz que o colocou vários dias na mesa de Damião de Góis. Mais tarde, chamou-o para a sua mesa, a fim de o interrogar. “In cena addidi illi 12 batzones, tantundem dederat Damianus.” Na ceia, acrescentei-lhe 12 bázios; outro tanto lhe dera Damião” (tradução diferente da de A. Torres). Constata-se um certo afastamento de Erasmo e a preocupação de Damião de Góis de pagar o alojamento.

Entre Abril e Agosto de 1534, coincidindo com a sua estadia em casa de Erasmo, Damião de Góis multiplicou os contactos com os Reformadores. No início de Abril, encontrou Guilherme Farel (1489 – 1565), francês, em Genebra, muito activo a pregar a Reforma em França e na Suiça. Em Maio ou Junho, tendo ido à Flandres regularizar os seus assuntos (carta B-XXIII, de Cognatus a Amerbach), passou por Estrasburgo onde encontrou Wolfgang Fabritius Capito (1478 – 1541), Gaspar Hedion (1494 – 1552) e Martin Bucer (1491 – 1551). Discutiram a Eucaristia e a autoridade do Papa.

Na carta B-XXIX-2955, de 30 de Julho, Erasmo diz a Schets que Damião prepara a sua ida para Itália. A 16 de Agosto, Erasmo escreve uma carta de apresentação para o Cardeal Pietro Bembo (1470-1547) B-XXX-2958).

Na carta B-XXXI, de 16 de Agosto, Luis Bär (1479-1554), professor de Teologia em Friburgo, diz a Jerónimo Aleandro (1480 – 1542), Bispo e Professor de Grego em Paris, que Damião de Góis parte para Pádua para lá estudar Direito Civil(!).

Partiu de Friburgo a 18 de Agosto (Carta B-XXXII-2963, de 25-8-1534 a Góis), está no dia seguinte em Basileia, onde Amerbach lhe entrega uma carta para Andrea Alciati (1492-1550), jurista italiano (carta A-IX). Passados dois dias, adoece um seu criado, que ele manda ir ter com Erasmo (carta B-XXXIV-2970 de Erasmo a Malanchthon). Erasmo diz que não se importa de o albergar se a doença não for a sífilis (carta B-XXXII-2963). Mas logo a seguir chega Damião de Góis que voltara para trás (carta B-XXXIV-2970); terá chegado a casa de Erasmo a 26 ou 27 de Agosto. Deverá ter ficado muitos poucos dias até que o criado se curasse. Depois partiu para Itália. No final de Setembro, ainda não tinha passado Como. Recebeu aí a notícia do falecimento do Papa Clemente VII, que se deu na noite de 25 para 26 de Agosto. Receando tumultos, decidiu não passar por Pavia e dirigiu-se directamente a Pádua. Aí terá chegado na primeira quinzena de Outubro, pois a 31 diz a Amerbach que já alugou uma casa (carta A-IX).

Pietro Bembo escreve em 11 de Novembro a Erasmo dizendo bem de Góis (carta B-XXXV-2975). Estava convencido que ele iria frequentar a Universidade, o que não aconteceu.

Na correspondência aparece aqui uma carta-prólogo (B-XXXVI) escrita e publicada por Segismundo Gelenski ou Gelenius (1497-1554), filólogo checo e tradutor, que dedica a Góis as suas Anotações à História Natural de Plínio, a que chama Castigationes. Estas dedicatórias de livros não têm o significado de homenagem que se lhes costuma atribuir: eram pagas, ou comparticipando as despesas de tipografia, ou adquirindo um certo número de exemplares. Não devem ser tomadas por si só como prova de uma amizade.

A 11 de Janeiro de 1535, Erasmo escreve a Góis a carta B-XXXVII-2987, que responde a uma carta dele que se perdeu. Erasmo está muito doente e de cama. A carta é breve. Parece que Góis tivera a ideia de contratar Lazzaro Buonamico (1479-1552) para vir a sua casa dar-lhe lições. Era uma ideia pretensiosa, tratando-se de um professor de muita reputação na Universidade, já com alguma idade. Recomenda-lhe que contrate um jovem. Pede que o pequeno texto Compendium Rhetorices, que para ele escrevera em 1534, não seja mostrado a ninguém e muito menos publicado (foi impresso por Rutgerus Rescius em Lovaina em 1544). De facto, diz o tradutor das Cartas para Francês:”L’ouvrage, en effet, n’ajoute rien à la gloire d’Erasme.” O texto figura no vol. 10, pag, 396-405 doOpus Epistolarum, de T.S. Allen.

Há na mesma carta uma frase que julgo ser importante: “Miror e Lusitania nihil venire responsi”, Admira-me nenhuma resposta vir de Portugal. É ainda o assunto da recompensa pela carta-prólogo 1800. Ora, constata-se que o assunto já estava esquecido nas cartas de Erasmo; ele volta a aparecer depois do contacto com Damião de Góis que, com toda a evidência, terá prometido alguma coisa. Pouco tempo depois a carta B-XL-3019, de 21 de Maio de 1535, volta ao assunto: “E Lusitania nihil ad te redire valde miror”. Admiro-me muito que nada vos tenha vindo de Portugal.

A carta B-XXXIX, datada de 21 de Maio de 1535 e endereçada por Filipe Melanchthon a um certo amigo é importante porque refere que Jerónimo de Pavia (o nome que adoptou Fr. Roque de Almeida) partira para Pádua para se juntar a Damião de Góis.

Alguns dados dão-nos a entender que Damião de Góis não se sentia bem em Itália. Detestava o clima, sofrendo alternadamente com o frio e com o calor. Sem dúvida estudou Latim, mas não deverá ter frequentado a Universidade. Fez várias digressões em Itália, nomeadamente a Roma; terá também ido frequentemente a Veneza. Passou alguns períodos no Sul da Alemanha, como veremos. Escreveu e publicou duas traduções do Latim: o Cato Maior de Senectute de Cícero e o Ecclesiastes, impressos em Veneza em 1538 por Estevão Sábio.

Em Abril-Maio de 1535, Góis está em Roma (cartas B-XL-3019, B-XLIII-3043); volta a Pádua em Junho (A-X). No final de Junho, vai para Augsburgo, donde escreve a 14 de Julho a Erasmo uma carta que se perdeu e que foi respondida pela carta B-XLIII-3043, de 18 de Agosto de 1535.

Entretanto, a 27 de Maio de 1535, Erasmo muda a sua residência de Friburgo para Basileia, sem que se consigam saber com precisão quais as suas razões.

Alguns dias antes, dia 21, escrevera a Damião de Góis a carta B-XL-3019, em que se queixa das suas doenças. Reprova Segismundo Gelénio que utilizou para a sua edição da História Natural, de Plínio, um manuscrito com falsidades. Queixa-se dos que o atacam por o seu Latim não seguir suficientemente Cícero. Queixa-se também de Lutero que o chama papista e inimigo de Cristo. No final diz: “Soube pela carta de Bero, que percorreis a Itália”, o que prova a inquietação de Góis.

Em Inglaterra, entretanto, eram martirizados John Fisher e Thomas More, o primeiro em 22 de Junho e o segundo em 6 de Julho de 1535. Ao assunto se refere a carta B-XLII-3042 de Schets a Erasmo.

Também a carta B-XLIII-3043, de Erasmo a Góis, responde a uma carta deste último que se perdeu, como já acima dissemos. Diz ter recebido uma carta de Jorge Coelho, mas nada de André de Resende. Erasmo teme haver ofendido a ambos: a Coelho, porque lhe escreveu carta curta demais, a Resende, porque demasiado extensa. A doença continua a apoquentá-lo. Admira-se das vertigens de Góis, quando ele é ainda tão jovem. Recomenda que não leia enquanto faz a digestão. Convida-o a visitá-lo em Basileia.

Refere depois o conselho de Góis para que apurasse mais a escrita, defendendo-se dizendo que escreve de jacto por feitio e tem dificuldade em rever. Mas, no final, atira uma piada a Góis com um pouco de veneno: “Spero te consuetudine doctissimorum hominum eam politiem feliciter assequuturum,ad quam me hortaris”, Espero que com o convívio desses sapientíssimos varões, possas felizmente alcançar a elegância a que me exortas.

Também a carta B-XLV-3076, de 15 de Dezembro de 1535 responde a uma carta hoje perdida de Góis. Queixa-se de Resende, que não voltou a escrever. Gilbert Cousin ou Cognatus (1506 – 1572) abandonou-o, sendo já Cónego. Refere-se depois ao martírio de Fisher e de Thomas More. Com esta remete outra carta da mesma data – a B-XLVI-3077– que se destina a dar notícias da sua precária saúde aos amigos de Pádua.

Aparece-nos a seguir uma carta ditada por Góis – A-XII-3078 – a 22 de Dezembro de 1535. É mais uma carta de circunstância, acompanhada por um relato sobre a morte de John Fisher e de versos em louvor de Carlos V, celebrando a sua entrada triunfal em Nápoles (Carta 3078).

A carta A-XIII-3085, de 26 de Janeiro de 1536, responde à carta de Erasmo B-XLV-3076. Góis lamenta comovidamente a doença de Erasmo. Revela então a Erasmo uma ambição: a de publicar uma biografia dele e a edição completa das suas obras. Para isso, bom seria que ele elaborasse o catálogo geral das suas obras. Declara o propósito de se deslocar a Basileia em Maio ou Junho desse ano, ou mesmo mais cedo. Pede ainda que isso fique em segredo e que ninguém disso se aperceba. Pede finalmente a Erasmo que lhe ofereça um mapa (original ou cópia) da Suíça que vira em sua casa.

Há uma carta em português de Damião de Góis a D. João III, de 12 de Junho de 1536, muito fragmentada e de leitura dificílima (Gavetas da Torre do Tombo, XXII-4-2A). Não a consegui ler, nem encontrar o jornal de Alenquer “Damião de Góis” onde Guilherme J.C. Henriques a transcreveu. Limito-me por isso à descrição do catálogo: “Carta a El-Rei a desculpar-se da falta de notícias e dando como testemunha da sua vida e estado, D. João de Menezes”.

Partiu logo a seguir para a Alemanha, dirigindo-se a Ingolstadt e a seguir a Nuremberga, donde, a 15 de Julho, escreve a última carta (A-XIV-3132) a Erasmo, e anuncia que vai regressar a Pádua. Há guerra na Suíça e tropas por todo o lado; os seus amigos dissuadem-no de prosseguir a viagem para Basileia. É isso mesmo que ele diz no início da sua carta. Sem que ele o soubesse, a carta já não tinha destinatário, pois Erasmo tinha falecido na noite de 11 para 12 de Julho.

Refere-se Góis à última carta de Erasmo que respondia à sua de 26-1-1536 (A-XIII-3085) e à breve resposta que ele lhe tinha remetido: ambas estas cartas foram perdidas. Diz que Erasmo lhe escreveu dizendo estar a pôr em ordem para ele o catálogo dos seus livros. Mas que se recusa a falar da sua vida. Góis diz-lhe que ele pode escrever apenas aquilo que o honra, esquecendo o restante. Que bastaria tocar ao de leve no seu nascimento. T.S. Allen e o tradutor belga anotam que Góis foi o único correspondente de Erasmo a fazer uma clara alusão ao seu nascimento ilegítimo.

Discorre depois sobre a utilidade de difundir uma tal autobiografia e o catálogo dos seus livros, que ele, Damião, publicaria no início das suas obras completas, que se encarregaria de imprimir a expensas suas.

Fala ainda do que ouviu em Ingolstadt, onde ficou dois dias: pregadores e professores caluniam Erasmo dizendo que mudou a sua residência para Basileia para mais à vontade seguir a seita de Huldrych (ou Ulrich) Zwingli (14841531), o chefe da Reforma na Suiça.

Pede de novo o mapa da Suiça.

Esta carta chegou às mãos de Amerbach só a 23 de Agosto, enviada por Bild Rheinauer ou Beatus Renanus (1485-1547), que viria a ser o autor da biografia e o supervisor da edição das obras de Erasmo (carta B-LII, de 29-8-1536, de Amerbach a Góis).

Damião de Góis afinal ficou mais tempo na Alemanha, pois só voltou a Pádua em Agosto, conforme carta A-XV, de 31 de Agosto para Amerbach. Já sabe que este foi designado herdeiro universal no testamento. Diz-lhe que Erasmo lhe escrevera prometendo remeter-lhe o catálogo dos seus escritos; quer saber se Erasmo levou a cabo esse trabalho.

Amerbach faz jogo dissimulado com Góis: diz-lhe que não encontrou catálogo nenhum, ao mesmo tempo que se mostra muito interessado no financiamento por Góis da edição da obra completa de Erasmo (cartas B-LII, já referida e B-LIII, de 12 de Novembro). Naturalmente, a edição não seria preparada por Damião de Góis. Este deve ter percebido o jogo, pois na carta A-XVII, de 14 de Dezembro, comunica a Amerbach “non duco mihi honori fore, si mea opera imprimantur” não acho que viesse a ser-me honroso o imprimi-las à minha custa. A troca de correspondência entre os dois acabou aqui.

Em Fevereiro de 1537, Amerbach publicava o livro Catalogi duo operum D. Erasmi Roterodami ab ipso conscripti et digesti. Cum præfatione D. Bonifacii Amerbachii iuriscons. ut omnis deinceps imposturæ via intercludatur ne pro Erasmico quispiam ædat quod vir ille non scripsit dum viveret. Accessit in fine Epitaphiorum ac tumulorum libellus quibus Erasmi mors defletur cum elegantissima Germani Brixii Epistola ad clarissimum virum d. GuL. Langæum. Basileæ, Anno M. D. xxxvii. Cum privilegio Cæsareo ad annos quatuor. Tem o colofon seguinte: Basileæ, per Hieronynum Frobenium et Nicolaum Episcopium, Anno M. D. xxxvi.

O livro continha a lista das obras de Erasmo por ele preparada em vida mas não para Damião de Góis. Mais tarde, saiu uma edição pirata com título quase idêntico Catalogi duo operum D. Erasmi, Ab Ipso conscripti & digesti. Cum præfatione D. Bonifacij Amerbachij ... Accessit Vita Erasmi, per Beatum Rhenanum, Monodia Frederici Nauseæ Erasmi uita graphice depingens ... Præterea Epithaphiorum libellus, Antuerpiæ apud uiduam Martini Cæsaris, expe[n]sis Ioannis Coccij, 1537. Esta edição incluiu os epitáfios escritos por um jovem português de 19 anos, Diogo Pires, Poeta novilatino, (2 em latim, 2 em grego e 1 com versos alternados nas duas línguas).

A vida de Góis terá prosseguido entre Pádua, Veneza e outras cidades, mas não saiu de Itália até Julho de 1537. Recebe em Junho desse ano uma carta (B-LVI, de 17-6-1537) do Cardeal Tiago ou Jacob Sadoleto (1477-1547), que lhe solicita uma carta de apresentação para Filipe Melanchthon, na esperança de encontrar apoio para uma eventual reconciliação do aparelho católico com os reformadores. Góis prontifica-se a escrever tal carta, respondendo-lhe nesse sentido (carta A-XVIII, de 1-7-1537). Teve depois umas curtas férias na Alemanha, pois, no dia 19 de Agosto redige uma carta (A-XIX) dirigida a Nicolau Kleynaerts ou Clenardo (1494-1542), amigo conhecido já de Portugal. Da ida à Alemanha fala na carta A-XX, de 17-8-1536, dirigida a “um certo amigo”, que é poeta e poderá ou não ser Jorge Coelho.

A carta de apresentação de Sadoleto a Melanchthon teve como resultado o corte de relações deste com Góis.

Volta a sair de Itália no final do ano (no Outono?), regressa a Pádua em Dezembro, de acordo com uma carta que lhe endereçou Sadoleto (carta B-LX, de 20-12-1537).

Não são conhecidas muitas das suas actividades em 1538. É sabido que habitava com seu futuro cunhado Splinter van Hargen e com Joachim Polites ou Burgher desde pelo menos meados de 1536, como diz Nicolau Clenardo na carta B-XLIX, de 22-4-1536, escrita em Évora e dirigida a Joachim Polites (? – 1569). A poesia Figmentum Politae de Polites, incluída no Aliquot Opuscula enumera o grupo de amigos dele, cheios de nostalgia quando ele foi passear a Roma e ao Reino dos Liburnos (entre a Ístria e a Dalmácia, hoje as cidades litorais a sul da Ístria e as Ilhas da Croácia – e não Nápoles, como já se escreveu); para além dos companheiros de casa, o poema refere outros que o elegeram como chefe e guia: Willinger de Schönenberg, fidalgo alemão, (Villingerus), Christoph von Stadion, idem, (Christophorus), Johannes Paludanus, de Calais. Está datado de 12 de Abril de 1538 (e não 2, como diz Jean Aubin).

Por volta de Maio ou Junho, encontrou com surpresa Johannes Magnus em Vincenza; o Bispo estava envelhecido e doente.

Antes do final do ano, Góis volta para os Países Baixos.

Antes de deixarmos a Itália, temos de referir alguns encontros importantes que Damião de Góis teve naquele País. O primeiro foi com Fr. Roque de Almeida que, por volta de 1536, lhe apareceu em Pádua a pedir guarida. Disse Góis no processo que ele apenas lá ficou alguns dias e que depois partiu para Veneza, onde se fez alquimista.

Outro encontro azarento foi como Jesuíta Simão Rodrigues que mais tarde o denunciaria na Inquisição por duas vezes em 1545 e 1550. Deverão ter discutido forte e feio e o Padre Simão terá ficado com uma péssima impressão dele, tanto assim que foi referir o caso ao seu Superior, Inácio de Loiola. Góis disse no processo que Inácio veio de Veneza a Pádua pedir desculpa das atitudes de Fr. Simão, albergando-se em sua casa, com alguns Irmãos da sua regra.

Outro conhecimento dele foi Giambattista Ramusio (1485 – 1557), grande viajante, que publicou o livro Delle Navigationi et Viaggi. Góis deu-lhe o manuscrito de Francisco Álvares, que ele traduziu para italiano e ali inseriu parcialmente.

Antes do final de 1538, partiu pois Góis para os Países Baixos. Joachim Polites compôs um poema de despedida que começa “Inclita, quæ magnum volitant tua scripta per orbem” (Aliquot Opuscula, 1544).

Em data difícil de determinar, no final de 1538 ou princípios de 1539, casou em Haia ainda antes do final do ano com Joana de Hargen, filha de Andrew van Hargen, de uma família de aristocratas rigorosamente católicos. Certamente, o casamento foi arranjado pelo irmão da noiva, Splinter van Hargen, com quem vivia há mais de dois anos em Pádua. A noiva deveria ser muito nova, pois teve um filho em 1565, dois anos antes de falecer, o que aponta para menos de 18 anos à data do casamento.

Para solenizar o casamento, o professor de Latim e Grego, Alard d’Amsterdam ou Alardus Aemstelredamus (1490 – 1544), escreveu um poema a que chamou Epithalamion Damiani a Goes Eqvitis lvsitani, et Joannae ab Hargen Hagensis, que deve ter sido impresso na altura e depois inserido num livrinho do autor chamado Theophilacti Epistola, Lovaina, 1541. O poema tem sido elogiado pelos autores, mas a verdade é que é quase inteiramente plagiado dos clássicos latinos. O autor deveria ter uma erudição muito grande e não deveria encontrar na altura quem o batesse nesse campo de modo a descobrir a cópia. Por outro lado, era de bom tom, na época, fazer citações dos clássicos, deles copiando pequenas frases; mas ele abusa. “Guglando” cada frase do poema, saltam à vista os sítios donde foi feita a cópia [Anexo 2]. Nem admira que Elizabeth Feist Hirsch diga que é “a poem full of amazingly pagan eroticism and mythology”!...

Dos seus amigos, recebeu Damião de Góis muitas felicitações pelo casamento: Pietro Bembo (carta B-LXI, Veneza, 5-4-1539); Lazzaro Buonamico (carta B-LXII, Pádua, 17-4-1539); Sigismundus Gelenius (carta B-LXV, Basileia, 23 de Junho de 1539); Cardeal Cristoforo Madruzzi (carta B-LXVIII, Trento, 5-11-1539); Glareanus (carta B-LXIX, Friburgo, 6-11-1539) e Tidemannus Gisius (carta B-LXX, Löbau, 16-11-1539).

Damião de Góis matriculou-se na Universidade de Lovaina em 4 de Junho de 1539. Em 1540, nasceu-lhe o primeiro filho, a que chamou Manuel. Pedro Nanninck ou Nannius (1500-1557), professor de Latim no Colégio Buslidiano em substituição de Gocklenius que falecera em 25-1-1539, compôs um Genethliacon para o recém-nascido (Aliquot opuscula).

Neste período, Góis publicou vários textos:

-Commentarii rerum gestarum in India, em Setembro de 1539, dedicado ao Cardeal Pietro Bembo (carta A-XXI), que termina com uma elegia de Pedro Nannius;

- Fides, religio, moresque Æthiopum sub Imperio Preciosi Joaniis, em Setembro de 1540, dedicado ao Papa Paulo III (carta A-XXIII). O livro termina com a Deploratio Lappianæ Gentis, em forma de carta dirigida também a Paulo III (carta A-XXIV). Pede depois ao Cardeal Pietro Bembo que o entregue pessoalmente ao Papa (carta A-XXVI). Assim fez o Cardeal, como comunicou a Góis (carta LXXIX, Roma, 11-1-1541).

- Hispania, em Dezembro de 1541, com um prólogo de Pedro Nannius (carta B-LXXXVIII), pedido por carta de Damião de Góis (carta A-XXVIII).

- Epistola Damiani a Goes ad Jo. Jacobum Fuggerum, pro defensione Hiapaniæ (carta A-XXIX, de 11 de Abril de 1542)

- Jo. Jacobus Fuggerus ad Damiano a Goes Equiti Lusitano (carta B–XCI, de 8 de Maio de 1542). Estas duas cartas só aparecem de novo nos Opuscula publicados em Coimbra em 1791.

Entretanto, a família ia aumentando: nascia outro filho a Damião de Góis, que foi chamado Ambrósio, antes de 4 de Abril de 1541 (carta n.º LXXXIV, do Cardeal Cristoforo Mandruzzi, de 21 de Maio de 1541).

Damião de Góis agora sentia-se bem na vida. Entrara numa família holandesa prestigiada, certamente sem problemas de dinheiro e podia dedicar-se à vontade ao estudo e ao convívio com os amigos.

Apareceu uma pequena sombra a estragar-lhe a tranquilidade. Foi o caso que a Santa Inquisição decidiu proibir a venda do Fides, religio, moresque Æthiopum sub Imperio Preciosi Joaniis, pelo facto de Mateus defender o catolicismo dos Etíopes, apesar de descrever cerimónias que bastante se pareciam com as judaicas. Foi o próprio Infante D. Henrique que isso comunicou a Góis por carta de 27 de Julho de 1541, redigida por Jorge Coelho, secretário dele. Góis respondeu com duas cartas que não chegaram até nós, mas certamente bastante duras. O Cardeal defende o seu ponto de vista em carta mais extensa, de 13 de Dezembro de 1541. Ambas as cartas foram parar ao processo (n.º 17170) onde se encontram nas imagens 68, 70 e 71 da versão online. Maximiano Lemos benevolamente defende o Cardeal, afirmando que ele revela sentimentos de simpatia para com Damião de Góis, enquanto Lopes de Mendonça acha que é tudo hipocrisia que esconde a perfídia.

Por esta altura, um médico de Haia, Josse Welsens ou Justus Velsius (1505-1581) dedicou-lhe a sua versão do livro de Hipócrates De insomniis (carta B-LXXVIII, de 1-1-1541), o que se costuma considerar sinal de estima e consideração, como acima disse. Por mim, isso significou apenas uma despesa para Góis.

Sentindo-se bem na Holanda e na Flandres, Damião de Góis não teria a mínima intenção de voltar a Portugal. Ele mesmo o diz a Beatus Rhenanus no final da carta que lhe escreveu de Lovaina em 1 de Junho de 1542 (carta A-XXX). “Finalmente quero que saibas o que, segundo vejo, ignoráveis: ter eu fixado, por causa do ócio literário, residência em Lovaina, onde resolvi viver, se Deus quiser.” Mas o destino iria trocar-lhe as voltas.

Em Julho de 1542, ia Damião de Góis com a família a caminho da Holanda, quando, em Antuérpia, recebeu a notícia de que um exército francês, comandado por Martin van Rossem ameaçava Lovaina. Regressou a toda a pressa à cidade e foi escolhido para comandar um grupo de estudantes que se tinham alistado para defender a cidade.

Rossen propôs aos habitantes que levantaria o cerco se lhe dessem vitualhas, a artilharia mais pesada e 75 000 florins em dinheiro. Os da cidade não quiseram aceitar e contrapuseram 50 000 florins, alguns mantimentos e vinho. Entretanto Góis tinha saído da cidade com dois camaradas para conferenciar com os invasores. Parece que estes teriam aceite as condições oferecidas e retiraram, levando consigo Damião de Góis e os seus camaradas.

Damião de Góis esteve preso 9 meses na Normandia e depois remetido para Fontainebleau. Pediam 6 300 escudos de oiro pela sua libertação.

Não há dúvidas que a libertação de Damião de Góis só foi conseguida mediante a intervenção do Rei D. João III. É o que diz claramente Splinter van Hargen na carta de 3-3-1543 (carta B-XCVI, em que diz que Góis já está em liberdade) dirigida a Cristoforo Madruzzi. Foi-lhe atribuído um resgate elevadíssimo de 9 000 ducados, concedendo-se no entanto ao Rei Português a restituição de 8 000, se se provasse que a captura se fizera sob direito de guerra.

Depois da intervenção do Rei, Damião de Góis não tinha argumentos para se recusar a partir para Portugal. Adivinha-se que sua esposa era contra. Ele usa o nome dela para justificar o atraso na partida, na carta ao Rei, de 11 de Julho de 1544: ”estando de todo prestes pera me ir nesta armada me soçede o inconveniente de maa desposiçam de minha mulher, e de sorte que nem com honra nem bom grado de Deos nem do mundo a poderya pello presente deyxar, assy sõr que poys nesta detremynaçam nã sayo agora cõ efeyto, será se a Deos praz e mo a morte não estrovar o mays cedo q posyvel me for, poys vosa alteza disto tem vontade e gosto.” Depois fala do brasão das armas concedido por Carlos V e acrescenta:”Beyjarey as mãos de Vossa Alteza me querer fazer a mercê de mas confirmar, que será ocasyam de minha molher tomar mor ânimo de se ir a esses reynos e a seus parentes de a deixarem ir”.

No fim de 1544, saía da oficina de Rutgerus Rescius, a colecção das suas obras designada por “Aliquot Opuscula”.



REGRESSO A PORTUGAL



Voltou para Portugal em 1545, sabendo-se que lhe estava destinado o cargo de mestre e guarda-roupa do príncipe D. João, pai de D. Sebastião. Partiu para Portugal com a família repartida: os filhos e as mobílias por mar, a mulher por jornadas e ele pela posta.

Chegou Góis a Évora em meados de Agosto de 1545 e logo no mês seguinte a 5 e 7 de Setembro, o Padre Simão Rodrigues (designado por Mestre Simão) fez na Inquisição de Évora um longo depoimento acusando Damião de Góis de, nove anos antes, em Itália, em conversas com ele durante o período de dois meses, ter manifestado simpatias pelas doutrinas luteranas. É um depoimento cheio de maldade pois acusa de tudo sem nada provar. Não são narrados factos mas opiniões. Não seria aceite num tribunal que funcionasse correctamente. Os únicos factos concretos que refere são que Góis falava francês e italiano e, segundo lhe parece, também flamengo e alemão. As palavras concretas proferidas por Góis nunca são referidas.

A própria Inquisição deve ter dado conta disso, porque em 24 de Setembro de 1550, a Inquisição de Lisboa lhe pediu novo depoimento, que pouco ou nada acrescenta.

O Padre Simão Rodrigues era mestre de doutrina do Príncipe D. João, pai de D. Sebastião e era voz corrente que queria ser também mestre de letras, lugar para que fora convidado Damião de Góis. Não o conseguiu, mas conseguiu afastar Damião de Góis daquele cargo, que foi dado a António Pinheiro, depois Bispo de Miranda.

As denúncias não tiveram seguimento na altura e parece também não terem abalado o prestígio de Góis junto do Rei.

Góis foi para Alenquer e continuou a preocupar-se com as letras. Em 1546 publicou o relato do cerco de Lovaina sob a forma de carta dirigida ao Imperador Carlos V, com o título Urbis lovaniensis obsidio. Remeteu-a ao Rei D. João III, acompanhada de uma carta (PT-TT-CC/1/78/37).

O alvará de 3 de Junho de 1548 nomeia Damião de Góis para guarda-mor da Torre do Tombo a título provisório, “enquanto Fernão de Pina não for livre dos casos por que ora é preso e acusado.” Assim começou ele a desempenhar um cargo que lhe deu mais trabalho do que visibilidade e prestígio.

Em 1549, publicou o livro Damiani Goes equitis lusitani de bello cambaico ultimo commentarii tres, dedicado ao Infante D. Luis (carta A-XXXIII). O livro tem privilégio do Imperador e foi impresso em Lovaina por Servatium Sassenum, de Diest. Constata-se que Góis manteve muitas relações com o centro da Europa, que ainda estão por estudar.

Desde a sua nomeação para a Torre do Tombo, Damião de Góis residia em Lisboa, na freguesia de Santa Cruz do Castelo, conhecendo nós nos livros da paróquia o registo do baptismo de quatro dos seus filhos mais novos e do falecimento de sua esposa. Levava uma vida discreta agarrado ao trabalho e à leitura, com relativamente poucos amigos. Entre estes destaca-se João de Barros, que a 18 de Setembro de 1552, foi padrinho de baptismo de seu filho Fructus.

Publicou depois a Urbis Olisiponis Descriptio, impressa em Évora em Outubro de 1554, dedicada ao Cardeal Infante D. Henrique (carta A-XXXIV).

Na ordem dos trabalhos dele, segue-se a redacção da Crónica do Príncipe D. João, em que se ocupou durante dois ou três anos. Terminou a obra em 1557, mas só foi publicada dez anos depois. Narra os primeiros vinte e seis anos da vida de D. João II, nascido em Lisboa a 5 de Maio de 1455.

Entretanto, ainda em 1554, decidiu mandar para a Flandres os seus dois filhos mais velhos Manuel e Ambrósio, para junto de seu cunhado Splinter van Hargen, a fim de se matricularem na Universidade de Lovaina (carta A-XXXVI, de 2-3-1555, para o Cardeal Cristoforo Madruzzi). O mais velho constituiu lá família, mas Ambrósio regressou mais tarde a Portugal.

Por volta de 1558, o Cardeal Infante D. Henrique confiou-lhe a tarefa de escrever a Crónica de seu pai, D. Manuel I, que já tinha estado a cargo de Rui de Pina, de seu filho Fernão de Pina, do Bispo António Pinheiro e de João de Barros, sem que nenhum deles levasse o barco a bom porto.

Pôs-se Damião de Góis ao trabalho e gastou seis anos a escrever a obra. Ao ser publicado em 1566 e 1567, foi aprovado pela Inquisição, mas recebeu do público uma tempestade de críticas. Os acontecimentos descritos eram demasiado recentes para que os familiares já os tivessem esquecido. Muitos fidalgos sentiram-se melindrados e escreveram a Damião de Góis nesse sentido. Góis deu muitas vezes a mão à palmatória e fez as emendas que lhe pediam, quando pensava que eram justas.

Estas críticas têm impressionado os biógrafos de Góis, de tal modo que muitos dizem que terão sido as famílias fidalgas ofendidas que manobraram para o irem fazer parar à Inquisição. Não concordo. Lendo a edição da “Crítica” de Edgar Prestage, constata-se que ali não há jogo escondido, tudo foi feito às claras. Os fidalgos criticaram, Góis emendou o que lhe parecia que devia emendar e explicou os seus pontos de vista, eles replicaram e ainda responderam às emendas da Crónica. Quem escreve o que pensa não vai depois agredir à sorrelfa.

Já é um pouco diferente a revisão que a Corte impôs dos capítulos 23.º e 27.º da parte III da Crónica, caso que já foi levantado logo em 1839, por dois artigos publicados num jornal chamado O Museu Portuense. É sobretudo a pessoa do Cardeal que está em causa, já que ele e o seu séquito não encontravam na redacção de Góis adjectivos suficientes.

Damião de Góis não viu o perigo aproximar-se. D. João III faleceu em 11 de Junho de 1557 e a Regência ficou a cargo primeiro de D. Catarina, de pois do Cardeal D. Henrique; nem um nem outro tinham por ele a mesma consideração que o próprio Rei D. João III.

A Crónica de D. Manuel I é avaliada diferentemente pelos historiadores, muito louvada por uns, desvalorizada por outros. Há uma pessoa que a avaliou muito positivamente, porque dela se serviu: foi Jerónimo Osório (1506 – 1580) que a partir da obra de Góis redigiu a De Rebus Emmanuelis Lusitaniæ Regis, que é a Crónica do Rei em Latim e que é um dos livros escritos em Portugal mais difundidos na época. Aliás ele reconhece claramente no prólogo (dedicatória ao Cardeal D. Henrique) a sua dívida para com Góis (carta B-CX): “Entretanto, para maior facilidade, valeu-me Damião de Góis que com grande trabalho, pesquisa e canseira, tais factos recolheu de numerosas cartas e comentos, trazendo-nos à memória, através dos seus livros aquilo que eu de modo algum haveria logrado, sem vagar sumo, descobrir.“

Um acontecimento importante na vida social de Lisboa foi a chegada em 13 de Maio de 1565, de uma armada comandada pelo Conde Carlos de Mansfelt, que vinha buscar a Princesa D. Maria (1538-1577), filha do Infante D. Duarte, neta de D. Manuel I, para a Bélgica, que se ia casar com o Príncipe de Parma e Piacenza, Alessandro Farnese (1545 – 1592). O Conde trazia um séquito de perto de cento e vinte pessoas. Também Damião de Góis ofereceu um banquete aos visitantes, competindo assim com as pessoas mais chegadas ao trono (Maximiano Lemos).

A 25 de Setembro de 1567, faleceu Joana de Hargen, a esposa dedicada compelida a abandonar a sua terra para seguir o marido e que, ainda dois anos antes, tinha dado à luz o último filho, António. Sabemos que, depois da sua morte, passou a governanta da casa de Góis uma filha ilegítima, de nome, Maria.

Em 20 de Janeiro de 1568, D. Sebastião atingiu a maioridade (!) para reinar que se considerava ser aos 14 anos. Foi coroado nessa data no Paço dos Estaus. Naturalmente, durante um largo período, com um Rei menino, não se saberia muito bem quem mandava no Paço Real, entre sua avó, D. Catarina, seu tio, o Cardeal D. Henrique, o secretário Miguel de Moura... Damião de Góis continuava a desempenhar as funções de Guarda-Mor da Torre do Tombo e as exigências de todos esses mandantes não eram poucas. Pensamos que valeria a pena estudar com profundidade este período até à prisão de Góis para ver se não haverá sinais que nos digam quem tomou a iniciativa de fazer ressuscitar na Inquisição as denúncias de Simão Rodrigues. De facto, é muito provável que, velho e doente, Damião de Góis não tivesse já nem paciência nem capacidade para responder rapidamente a todas as solicitações que lhe faziam da Corte, suscitando a má vontade de todos ou de alguns.

Vou citar as doze cartas dirigidas a Damião de Góis que estão disponíveis neste período, transcrevendo duas de Miguel de Moura, que suponho ainda não foram publicadas (as referências são da D.G. de Arquivos):

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