MATAR A FOME NA ESCOLA
Para muitas crianças, o almoço na cantina é mesmo a sua única refeição quente, todos os dias. Neste cenário, dezenas de escolas decidiram abrir as portas dos refeitórios para dar comida aos seus alunos, nestas férias. Segue-se o relato e o grito de alerta de especialistas e diretores escolares, de Norte a Sul do País
A pobreza entrou de rompante nas salas de aula e sentou-se na primeira fila. Este ano, professores e funcionários de escolas de todo o País ficaram a saber que, quando uma criança aparece no gabinete do diretor a queixar-se de dores de barriga, durante a manhã, poderá ser porque tem fome. À segunda-feira, ao almoço, é também comum ver alunos a chegarem, impacientes, ao refeitório e a pedirem para repetir a dose.
Na novíssima Escola Professor Doutor Marques dos Santos, em Vila Nova de Gaia, a fachada é circular, desenha um pequeno anfiteatro, parece mesmo dar-nos um abraço. Tudo foi pensado para despertar os sentidos dos mais novos: paredes de vidro, com vista para o Douro; espaços verdes, à volta; corredores amplos. Imaginamos que as 252 crianças, entre os 3 e os 9 anos que, desde setembro, frequentam a Escola dos Sentidos, como é conhecida, têm as condições ideais para crescerem e aprenderem. No entanto, uma boa percentagem delas vive em bairros problemáticos, onde a norma são famílias com carências económicas.
"A crise que o País atravessa reflete-se aqui", confirma Alexandre Rodrigues, o coordenador. "Em dez casos, desconfiamos que o almoço seja a única refeição quente do dia." As funcionárias, que conhecem o meio, ajudam a sinalizar os casos. Nas situações mais graves, põem, discretamente, nas mochilas dos miúdos, um tupperware com o jantar.
Muitas vezes, os alunos deixam pistas nos desenhos que fazem, conta uma professora que pede para não ser identificada.
Entre lágrimas, recorda que a última festa de São Martinho foi dramática para alguns meninos que faltaram às aulas porque os pais não puderam dispensar 1 euro para comprar castanhas.
Este é um dos 20 estabelecimentos escolares de Gaia, entre cem, nos quais o pequeno-almoço e o lanche são oferecidos, diariamente, a todos os alunos, pela Câmara Municipal. Nas férias de Natal, não se nota qualquer diferença em relação ao período letivo aquela é uma das 30 escolas a funcionar, para dar resposta aos 4 mil miúdos que se inscreveram nos ateliês, tendo direito a comida.
A situação repete-se por todo o País.
"São várias dezenas as escolas abertas durante as férias, com o objetivo de alimentar os alunos", afirma Fernando Campos, vice-presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses.
O número de crianças abrangidas será maior no Norte do País, mas este terramoto social tem réplicas muito aproximadas em todo o continente. "Este ano, a oferta de refeições escolares aumentou pelo menos 13 por cento", acredita Filinto Lima, vice-presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas. Oficialmente, foram sinalizados 13 mil de casos de miúdos que passam fome em casa. Mas, a confirmarem-se as desastrosas previsões económicas para 2013, o número pode atingir valores estratosféricos. O aviso é de Albino Almeida, da Confap (Confederação Nacional das Associações de Pais): "A partir de janeiro, serão perto de 200 mil os alunos a precisar de ajuda."
UM 'APETITE' QUE AUMENTOU
Em Sintra, um dos municípios pioneiros no fornecimento de refeições em tempo de férias (desde 2002), há, igualmente, mais necessidades. No ano passado, tinham aberto apenas cinco cantinas, durante o período do Natal este ano, estão contabilizados 83 refeitórios. Em todas asescolas, explica o diretor do Departamento de Educação do Município, Frederico Eça, decorrem atividades de tempos livres.
Mas muitas crianças nem frequentam os ATL, vão à escola apenas almoçar.
Para esta semana, estão inscritos 4 074 meninos. Ao ano, o investimento do concelho ronda 4 milhões e 300 mil euros.
Na EB n.º 2, em Queluz, esta segunda-feira, 17, quase parece um dia de aulas normal. Cerca de metade dos alunos voltam a cruzar os portões bem cedo, apesar de terem feito, na sexta-feira, uma festa de final de período. "Há cada vez mais crianças a almoçarem, gratuitamente, embora não pertençam aos escalões isentos de pagamento", acrescenta Frederico Eça.
"As escolas têm ordens para oferecerem refeições mal sinalizam um caso novo." O facto de a comida servida ser hoje toda confecionada no local, ajuda a esticar os pratos, quando necessário.
E permite, por exemplo, que uma criança repita a refeição. Liliana, de 7 anos, pondera ir pedir mais um pouco de arroz com atum à cozinheira da escola de Queluz, quando vê o colega da frente regressar à mesa de prato novamente cheio... "Está muito bom!" A sopa de feijão verde, que, há uns anos, muitos se recusariam a comer, acabou num ápice. Quem trabalha nestas cozinhas não deixa de questionar: será que os dotes culinários das equipas melhoraram ou foi o apetite das crianças que aumentou? O alerta para o crescendo de miúdos que chegavam às aulas com fome foi dado no início de 2012, quando Vítor Sarmento, ex-presidente da Confap, lançou a petição Pelo Pequeno-Almoço nas Escolas. "Os sinais iam-me chegando de todos os lados", justifica. "Não podia ficar de braços cruzados." Mais de 9 mil assinaturas depois, com o documento entregue no Parlamento, fez o retrato, dramático, perante a comissão parlamentar de Educação.
O esforço foi reconhecido: chamaram-lhe PERA Programa de Emergência de Reforço Alimentar, destinado aos alunos do 2.º e 3.º ciclos. (Ver entrevista).
Uma das que aderiram de imediato ao PERA foi a D. Luís de Mendonça Furtado, no Barreiro. Já tem 41 alunos inscritos mas o número não para de subir. Por enquanto, ninguém sai dali com fome.
"Pede-se ajuda e arranja-se sempre maneira de a criança comer", avança Felicidade Alves, a diretora do agrupamento.
O pão de forma e o queijo para os pequenos-almoços são oferecidos pelo Jumbo de Coina todas as quartas-feiras, Maria de Fátima Cunha, subdiretora, vai no seu carro buscá-los.
Rosário Cabral e Natividade Coelho, as duas funcionárias do bufete, confirmam o lema da escola. Conhecem os meninos muito bem há uns que vêm ao reforço, logo às 8 e meia da manhã, assim que a grade sobe. E sabem que algo está mal quando os veem ao balcão, sem consumir, a olhar para os outros. "Ainda noutro dia reparámos num rapaz que costumava comprar muita coisa no bar. Descobrimos que a mãe tinha ficado desempregada e que ele já não trazia dinheiro." Chamaram-no à parte e entraram em contacto com a diretora de turma, que, por sua vez, participou o caso à direção. "Primeiro, damos de comer, depois resolvemos a situação ", garantem.
PÃO E LEITE À DISPOSIÇÃO
Sónia Pereira, psicóloga educacional numa outra escola da Margem Sul, especifica os sinais que ajudam a identificar situações preocupantes: "Muitas vezes, estão associadas a dificuldades na atenção ou concentração, mal-estar e dores abdominais, irritabilidade..." Em situações mais extremas, os avisos chegam do hospital e, então, constata-se que a alimentação é a ponta de um icebergue.
Há, inclusive, miúdos que passam mais tempo internados por causa da debilidade financeira das famílias. "Alguns pais pedem para não darmos alta aos filhos, quando o tratamento se mantém, porque não têm dinheiro para os levar regularmente ao hospital", conta Deolinda Barata, da Sociedade Portuguesa de Pediatria.
Situações de deficiências alimentares encontram-se em todo o lado. A EB de Leça da Palmeira está situada numa zona privilegiada, habitada por famílias de classe média e alta. Mesmo assim, há 35 crianças a beneficiar dos pequenos-almoços e dos lanches que a escola oferece (mais 15 do que no ano passado). "Os pais eram de classe média e assumiram compromissos aos 20 e tal, 30 anos, a pensar que o salário iria aumentar anualmente. Uns perderam o emprego, outros ganham menos. Muitos, por vergonha, não assumem", conta o diretor, Jorge Sequeira.
No Porto, a Câmara estendeu o programa Escola Solidária, que serve refeições durante as férias do Natal, aos irmãos, entre os 3 e os 10 anos. Na Secundária António Nobre, a forma de combater esta fome envergonhada passou por colocar em permanência, no bufete, canecas com leite para que qualquer aluno se sirva livremente.
Há também pão à disposição de todos e, dois dias por semana, fruta.
Nem a capital foge ao fenómeno. "A escola oferece refeições a alunos cuja situação não permite a atribuição de escalão máximo [apoio a cem por cento] mas que apresentam dificuldades económicas", esclarece Teresa Palma, da Secundária Luís de Camões. Uma realidade igualmente conhecida de Gabriela Silva, coordenadora do Programa de Educação para a Saúde, da D. Pedro V. Há sete anos que as queixas lhe chegam aos ouvidos os intervalos passa-os no gabinete a ouvir muitos desabafos. Não é por acaso que tem à mão uma caixa de lenços de papel.
Eis a verdade transparente dos números: em comparação com o ano passado, há, hoje, o dobro de crianças a almoçar de graça na escola. Em tempo de férias, as preocupações crescem. Gabriela Silva sabe que, quando os portões estão fechados, muitos alunos ficam sem comer. "Já é assim ao sábado e ao domingo: nesses dias, sentarem-se a uma mesa de faca e garfo é coisa que não acontece."
CARTÕES 'ESQUECIDOS' EM CASA
Tudo isto se reflete no comportamento: se os miúdos andam mal alimentados, revoltam-se, respondem mal aos professores e piora o rendimento escolar. Helena Cid, nutricionista, explica: "O cérebro não recupera, quando não é alimentado há algum tempo." As crianças com fome mostram-se sonolentas. Depois, podem ficar irritadas e agressivas, o que será um problema também para os docentes.
José Morgado, professor de Psicologia Educacional do ISPA, reforça a ideia: quem passa mal não consegue aprender.
"Muitas vezes, vale-lhes a atenção cada vez maior de toda a gente, inclusive dos seus pares. Há tempos, um miúdo foi mandado sair da sala porque estava a comer.
Um colega explicou à professora que lhe tinha dado aquela maçã porque o outro ainda não comera nada naquele dia." Será para evitar passarem por algo parecido que Rute, 10 anos, e Alfredo, 14, correram a inscrever-se nas refeições escolares, durante a pausa letiva. Alunos do 5.º e 7.º ano do Agrupamento João da Rosa, em Olhão, os dois confessam que vai ser melhor assim. "Gosto mais da comida da escola", diz a menina. O rapaz concorda: "Eu também. Já levo muitas vezes coisas para jantar." Foi a pensar em casos assim que Luís Felício, o diretor do agrupamento, teve a ousadia de abrir também, e pela primeira vez, o refeitório para os alunos mais crescidos.
"Geralmente, é só para o 1.º ciclo, mas, este ano, percebi que a situação é dramática para todos. Não podia fechar as portas e ir para férias descansado." Estamos no meio do refeitório, no último dia de aulas, quando Luís Felício é interpelado por um dos miúdos da fila do almoço. "Prof, desculpe, comprei a senha mas esqueci-me do cartão, posso comer na mesma?" O diretor disfarça um sorriso triste e sossega-o: "Claro, não te preocupes, depois acertamos isso." Casos destes cresceram e multiplicaram-se. Para esta semana, só tinha confirmado quinzena cantina, mas Luís Felício acredita que o número será muito maior.
"Quando começarem a ver outros a comer na escola, muitos mais se seguirão."
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