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quarta-feira, 22 de maio de 2013

EXTRACTO DO PRÓXIMO ROMANCE DE MANUEL MONTEIRO : O FALCÃO ALBANÊS

(Este romance é a continuação do: SEI ONDE MORA O HERBERTO HELDER)

EXTRACTO DO PRÓXIMO ROMANCE DE MANUEL MONTEIRO : O FALCÃO ALBANÊS


Às 6 da matina, trrrrriiiiiiiiiiiii, terrrrrrriiiiiiiiiiiiii, terrrrrrriiiiiiiiiiii. O malvado despertador foi implacável.
Laura estava habituada a madrugar desde os tempos que, aos 16 anos, entrara na fábrica de lanifícios. Gabriel é que estava treinado num horário mais retardado. Por isso lhe custou um pouco a largar o quente da cama.
-De pé, preguiçoso…
Laura puxou a roupa que cobria o companheiro, que se encontrava nu, e este saltou da cama e correu para a casa de banho.
Depois da toalete a tarefa seguinte foi carregar a carrinha de Gabriel com os sacos de livros. O café já estava aberto e eles beberam o seu cafezinho bem quente, para que o despertar fosse total.
Quando chegaram à feira da Ladra eram cerca de sete horas. A azáfama já era grande. Os feirantes descarregavam toda a espécie de tralha das suas carrinhas e apareciam os primeiros jovens com grandes sacos às costas.
Gabriel dirigiu-se a um velho feirante e perguntou-lhe onde podia instalar a banca. O velho olhou para ele, estranhando a fineza da sua imagem. Depois perguntou-lhe se tinha licença da câmara e lugar marcado.
-Licença, tenho; lugar marcado, não…
-Olhe, o melhor é falar com o fiscal, que deve estar a chegar, porque, até às nove horas, não pode ocupar nenhum lugar marcado. Sei que existem aí alguns lugares disponíveis, mas só o fiscal o pode orientar com segurança.
Gabriel referenciou o fiscal pelo colete fosforescente, de tons amarelos. A licença contemplava um espaço de quatro metros quadrados e Gabriel comprara os cavaletes e as tábuas já a contar com estas medidas.
A feirante do lado refilou, num aviso:
-Eh, nada de instalar a banca para cá do risco branco.
Os leões marcam o seu território mijando, os humanos lançam avisos sonoros. Cada um utiliza as armas que pode.
Laura, com o seu faro de sobrevivência, observou os vizinhos mais chegados. De um lado a velhota com toda a espécie de velharias, estendidas sobre um plástico, no chão. Fôra ela que lançara o aviso sobre os limites do território. Do outro lado estava um jovem com uma tenda que comercializava sacos e malas de senhora.
Depois de montar a banca Gabriel foi arrumar a carrinha. Antes de partir disse a Laura:
-Bom, ainda não está tudo como deve ser, mas vamos aprendendo com a experiência. Vou arrumar a carrinha; se vier alguém para comprar já sabes, o preço está marcado na primeira página e tu procedes como o combinado: se não houver contestação ao preço vendes pela quantia indicada; se houver podes baixar, regra geral, um euro. Entendido, senhora alfarrabista?
Laura sorriu, agradecida por tanta generosidade. Deu um beijo nos lábios do Gabriel. A velha do lado resmungou, entre dentes:
-Já? Estou a ver que vamos ter aqui espectáculo…
Gabriel sorriu ao ouvir o comentário da velha. Laura olhou para ela friamente.
Quando Gabriel regressou de arrumar a carrinha encontrou Laura acabrunhada. Pensou que se tivesse pegado com a velha resmungona. Mas o motivo era outro.
-Vês, Gabriel, eu não te disse que isto não era para mim?
-Mas o que se passou, mulher?
-O que se passou foi que um homenzinho me perguntou se eu tinha o romance a Rosa do Adro. E eu sei lá o que é tal coisa.
A velha do lado, sempre com os radares para os novatos, pensou em voz alta:
-Ai, isto promete, promete…
Laura não se conteve:
-Promete eu dar-lhe com um livro nas trombas, não demora nada!
O jovem das malas para senhora deu uma sonora gargalhada e exclamou:
-E só se perdem as porradas que não acertarem na velha!
-Velha é a vaca da tua mãe, ó drogado…
Levantou-se ali um burburinho dos diabos. Gabriel ficou quase paralisado no meio daquela algazarra toda. O jovem virou-se para ele e disse:
-Não se preocupe, amigo. Isto faz parte da animação da feira. E serve para despertarmos.
O acontecimento fez bem a Laura. Arrancou-a àquela fixação de que não era capaz de desempenhar a sua função de vendedora de livros.
Gabriel aproveitou a calma que se instalou depois da berraria e disse a Laura:
-Querida, não faças de cada dificuldade uma tragédia. Não vês como esta gente enfrenta a vida? Aplica a característica que mais marca os portugueses; o desenrascanço. Foi com ele que nós demos novos mundos ao mundo.
-Mas ainda não me explicaste essa do romance A Rosa do Adro. Ou também nada sabes desse livro, se é que tal livro existe…
-Querida amiga, eu não sei tudo. Não há ninguém, por mais sábio que seja, que tudo saiba. Mas, por acaso, eu conheço a obra em questão. E aqui para nós que ninguém nos ouve: esse livro é um dramalhão de faca e alguidar, mas é já um clássico da literatura portuguesa, com milhares de livros publicados em sucessivas edições e ainda hoje muito procurado, como pudeste constatar. Foi escrito no século XIX por um operário tipógrafo, no tempo em que os operários escreviam, chamado Manuel Rodrigues. Este romance deu origem a um filme, mudo, com o mesmo título.
-Oh, merda, como queres que eu saiba isso tudo?
-Ó santinha, não é necessário,saber isto tudo. Só tens que responder ao cliente se tens ou não tens.
-E como sei eu que o tenho ou não?
-Não tens olhos? Se estivesses numa livraria também ias à prateleira ver se lá estava ou não.Aqui estendes os olhos pela banca, que não é muito extensa, e logo vês se o tens ou não. Com o tempo, vais fixando as obras que tens para venda, pois que todos os dias de feira esses livros te passam pela mão, ao montares e desmontares a banca.
-Para ti é tudo fácil, Gabriel.
-Como para ti era fácil manobrar a máquina de costura, na fábrica onde trabalhavas. Mas tiveste que praticar, não? Então, minha amiga, faça o que sempre fez: aprenda e pratique.
-Bem, de tudo isto algo aprendi. Sei o que é a Rosa do Adro e isso já não esquecerei…
-Bravo, bravo, Laura! Assim é que é…
-Já estou a ver que o circo veio para ficar – refilou do lado a velha, mas também ela muito interessada em ouvir falar sobre a Rosa do Adro, romance de que já ouvira falar.
Aprendendo com os erros, Gabriel refreava o seu entusiasmo por estar a lidar com matéria que tanto prazer lhe dava, os livros, e por os utilizar para elevar a consciência da mulher que amava.
Sabia agora que não podia forçar nem queimar etapas. A experiência com o livro A Rosa do Adro deu-lhe a pista certa para lidar com a situação. Laura teria que aprender pela prática, lentamente. A teoria, o domínio dos livros, o título da obra e o nome do autor, iriam sendo assimilados à medida que ela os fosse vendendo.
Gabriel aplicou no espaço da venda de livros ao ar livre o que viu nas imensas livrarias que frequentava: deixava os leitores percorrerem a banca e folhear os livros sem intervir. E só o fazia quando era solicitado para isso. Laura observava tudo e seguia o exemplo do companheiro.
-Laura, uma coisa podes fazer, já que temos tanto tempo livre: todos os livros, sobretudo os romances, têm um resumo, quase sempre na contra-capa, do assunto tratado no enredo. E trazem também a biografia do autor. Então tu podes ir conhecendo os autores e um resumo da obra, consultando os livros expostos.
E para exemplificar pediu à Laura para agarrar num dos livros da frente da banca. Laura agarrou naquele que mais próximo da sua mão se encontrava. Quando Gabriel viu o livro que Laura escolhera, exclamou:
-Isto hoje é só para a desgraça! Foste logo escolher um livro fácil como o caraças: a Náusea, do Sartre…
-A quê do quê?
-Bela charada que fizeste com essa pergunta, rapariga…Mas coloca lá esse livro. Isso era como pôr um estudante de medicina do primeiro ano a fazer uma operação complicada a um doente.
Gabriel foi ele próprio buscar um livro.
-Aqui está um que deves conhecer e ao seu autor: Cem Anos de Solidão,Gabriel Garcia Marquez.
-Ah,é por ter o teu nome? Mas o título é bem bonito…Cem Anos de Solidão…
Naquele dia Laura consultou três livros e fixou o seu resumo e a biografia dos autores: o já referido Garcia Marquez e o Cem Dias de Solidão; Manuel da Fonseca e o romance Cerromaior; Jorge Amado e os Capitães da Areia.
Como ia embalada, queria avançar para mais autores. Gabriel refreou-lhe o ímpeto:
-Não, vai com calma. Vinho bom bebido em excesso arruína o organismo. Consolida bem o que estudas-te, se for necessário volta de novo aos livros já consultados, mas não carregues de mais o cérebro. Um passo de cada vez.
O dia estava cheio de sol e movimento. Apesar da crise as pessoas, embora uma minoria, sentia a necessidade de ler os seus autores preferidos. Livros que estavam nas livrarias a 15 euros ali eram vendidos, em bom estado, alguns quase novos, a cinco e seis euros.

Gabriel era um exímio vendedor porque dominava quase todos os livros em exposição. Ele não se limitava a falar na obra que o possível cliente tinha na mão. Aconselhava outras obras, e o leitor, que só pensava comprar um, por influência da argumentação de Gabriel, levava dois ou três livros.
Havia clientes, sobretudo mulheres, para quem não era necessário grande, ou nenhuma, argumentação. As leitoras do Paulo Coelho, da Danielle Sttil, do Nicholas Sparkes, da Margarida Rebelo Pinto e outros autores da chamada literatura ligt sabiam, quase todas, a obra completa dos seus escritores favoritos e compravam, sem grande regateio, as obras que lhe interessavam.
Quando ao fim do dia começaram a arrumar a banca, verificaram que os livros arranjados pelo Silvério tinham sido os mais vendidos.
-Gabriel, o Silvério tinha razão: os livros dele foram os que mais se venderam…mas não lhe vamos dizer senão não há quem o cale.
E os dois riram com gosto. E com mais gosto riu Laura quando Gabriel contou os euros que fizeram com a venda dos livros: 136 euros!
-Porra, muito mais do que andasse a limpar casas.
-Calma, isto não é tudo lucro: tens que contar com as licenças, o gasóleo e quando tiveres que comprar livros para vender a margem de lucro será menor. E não esqueças as despesas com a carrinha, que agora correm por minha conta.
-Mesmo assim, querido Gabriel, é muito bom. E estou a gostar muito.
Estavam os dois felizes.
Laura aproxima-se de Gabriel e diz-lhe ao ouvido, baixinho, para que a cusca da velha do lado não ouvisse:
-Para comemorar, logo dás-me uma foda à canzana.
A velha, apesar do seu ouvido de tísica, não conseguiu ouvir a frase obscena. Gabriel é que estragou tudo porque, com o entusiasmo, disse alto:
-Ah, se tiver tesão dou…
A velha viu confirmada a sua suspeita da depravação do casal:
-Nojentos!
O rapaz das malas para senhora, que adorava libertinagens, e muito mais de por a velha em brasa, gritou:
-Ah velha do caralho, o que tu tens é inveja de não poderes tirar as teias de aranha da cona. Ou pensas que eu não sei que tu eras uma fodilhona de marca?
A velha atirou-lhe com um galo de Barcelos que se escaqueirou ao embater na estrutura de metal da tenda do rapaz. Ele ria-se, ria-se que nem um perdido, enquanto dava mais uma chupadela no charro.

Manuel Monteiro

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