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quarta-feira, 31 de julho de 2013

Lisbôa. Cronica anedótica (Leitão de Barros, 1930)



"Lisboa, Crónica Anedótica" é um clássico do cinema mudo português. Realizado por Leitão de Barros, o filme estreou-se a 1 de Abril de 1930 no Cinema S. Luíz.

Síntese:
Lisboa, Crónica Anedótica são curtos episódios da vida Lisboeta.
As figuras-tipo da cidade: o ardina, o polícia, o militar; as cenas do quotidiano: os estudos e o lazer dos alunos, as docas e a faina, os bairros populares, os monumentos e praças (Praça do Comércio e Praça da Figueira), o trânsito em Lisboa, os domingos, os desportos, os turistas, os velhos e as crianças.

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Em nenhum momento, mesmo naqueles em que predomina uma certa forma dura, recortada, claramente influenciada pela escola soviética, o filme se pretende "realista".
A ideia central de "Lisboa" é juntar o documento e a ficção numa crónica fragmentada que, através de subtis ligações interiores, nos revele progressivamente aquilo a que poderemos chamar a "alma" da cidade e o seu tempo actual e passado, perene, se assim quisermos. Mas a crónica é também "anedótica", entendendo-se a palavra no seu duplo significado: vinha de "anedota", como episódio, e vinha de "anedota", como "história engraçada".
A ideia de fragmentação, de pequenos apontamentos inventados e ligados a outros apontamentos puramente documentais, facilita a crónica (...), a sequência dos factos. E facilita também o trabalho de montagem, que era, de facto, o calcanhar de Aquiles do realizador. Tudo depende da pesquisa, da paciência e da invenção. Por outro lado, a presença de actores misturados com personagens da vida real permite a Leitão de Barros aproveitar a sua capacidade histriónica, digamos, para fazer melhor do que o real.
Não se pode deixar de referir um conjunto de apontamentos ligados a esses actores, velhos e novos, que ainda hoje dão ao filme a sua graça, já que a ficção envelhece menos que o documento: o saloio Estevão Amarante olhando os manequins na montra e replicando ao aviso da empregada Josefina Silva "Não pode ver sem tocar?" com o imediato "Eu até era capaz de tocar sem ver!"; Nascimento Fernandes e as suas mãos maravilhosas seduzindo com boquinhas e piscadelas de olho as bonitas condutoras de automóveis; Vasco Santana e Costinha, no eléctrico do Campo Grande, às voltas com um burro que impede a passagem; o grande Chaby Pinheiro, na sua única aparição cinematográfica, no papel de um vendedor da Feira da Ladra que mostra um corno aos compradores; Alves da Cunha, num momento dramático no Arsenal da Marinha, uma das melhores descrições de ambiente operário do nosso cinema; Teresa Gomes na inenarrável cena de "peixeirada" da Praça da Figueira, com evidentes alusões eróticas de peixes e alhos; Eurico Braga, galã convencional, descendo a Avenida da Liberdade no seu carro e declarando-se às bonitas transeuntes; o conto do vigário da bilha quebrada, com Perpétua Santos.
Alguns documentos visuais também denotam um extraordinário poder de observação e ganham um sentido profundo no contexto do filme, como esses velhos dos Inválidos do Trabalho construindo os seus caixões, cena que liga com a terra e , através dela, com uma criança, sintetizando o ciclo da vida. E o pitoresco - como ao longo do filme os mais variados tipos populares - alterna com imagens de beleza pura, de notável recorte plástico, como os marinheiros no veleiro e as suas fainas, ou como as imagens das diferentes formas arquitectónicas da cidade. Leitão de Barros não deixa de nos mostrar o bulício da cidade, o seu movimento, culminando o filme na viva descrição de um domingo lisboeta, onde, a par de uma captação insólita de costumes, se transmite um "domingo desportivo" cheio de interesse - corridas de out-boards, provas de atletismo, desafios de futebol, touradas, etc.
Esta transformação do documento em crónica, esta transfiguração anedótica do real, gerou alguns equívocos, pois se exigiu a Leitão de Barros uma maior dose de "verdade", de "verosimilhança", de "realismo", quando era outra coisa que estava em causa, do mesmo modo que uma crónica de um jornal não é uma reportagem. A nossa crítica mais responsável, durante muito tempo, preferiu "Nazaré" e "Maria do Mar" a "Lisboa, Crónica Anedótica", mas eu creio que este é muito mais moderno, muito mais imaginativo, muito mais original, muito mais "cinegráfico", se assim quisermos."

In Luís de Pina, in História do Cinema Português, ed. Europa-América, col. Saber, 1986


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Leitão de Barros recriou, como ninguém, o que mais tarde chamou o lado «pobrete mas alegrete» do «fatalismo sem revolta» do «povo ribeirinho da velha Lisboa».

In João Bénard da Costa, Histórias do Cinema, col. Sínteses da Cultura Portuguesa, Europália 91, ed. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1991.

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