Previsão do Tempo

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Elogio da bebedeira - Opinião - DN

Elogio da bebedeira - Opinião - DN

FERNANDA CÂNCIO
OPINIÃO

Elogio da bebedeira

por FERNANDA CÂNCIOHoje
O bom senso não é fonte de direito; antes fosse." Esta frase do acórdão da Relação do Porto que ontem deu brado é todo um programa e, nesta altura dos acontecimentos, de aplicação praticamente infinita. Mas por partes: um aspeto interessante da decisão é o da defesa feroz da privacidade. O tribunal considera que a empresa que despediu um trabalhador de recolha de resíduos por este apresentar uma taxa de alcoolemia de 2,3 graus, aquando de um acidente no carro de serviço em que era transportado (o motorista estaria também ébrio, embora com uma taxa mais baixa - 1,79 - e foi igualmente exonerado), não poderia ter acesso ao resultado do exame efetuado ao homem quando deu entrada no hospital, a não ser que o próprio lho fornecesse. E concluem: "É um dado relativo ao estado de saúde do trabalhador que a recorrente nunca podia conhecer." Ora em 2007, outra Relação, desta vez de Lisboa, teve um entendimento oposto no caso de um cozinheiro do grupo hoteleiro Sana, sancionando o despedimento deste por ser seropositivo para o VIH, apesar de o trabalhador nunca ter disso informado a entidade patronal e de essa informação ter sido apenas comunicada pelo seu médico assistente ao clínico responsável pelos trabalhadores do hotel, que por sua vez o considerou "inapto para o trabalho". A Relação de Lisboa chegou mesmo a contrariar pareceres científicos (um dos quais do então coordenador do combate à infeção VIH/sida), certificando que o cozinheiro constituía "um perigo para a saúde pública". Desta vez, aparentemente, não houve recurso a especialistas, mas estes juízes nem por isso se escusaram ao papel. Apesar de darem logo o despedimento como improcedente, frisam ainda que nas normas da empresa não existe qualquer referência ao consumo de álcool e, portanto, se "é evidente que o motorista do camião não pode beber", o mesmo não se aplica ao "acompanhante": "Com álcool, o trabalhador pode esquecer as agruras da vida e empenhar-se muito mais a lançar frigoríficos sobre camiões." Ou frases sobre acórdãos, inclusive. Enfim: já sabíamos que no sistema judicial português cada juiz é uma ilha, e que conhecer uma decisão nada nos diz sobre outra, mesmo que os pressupostos sejam idênticos - arbitrariedade total, portanto. Já sabíamos que os juízes se podem arrogar contrariar cientistas e estipular o seu próprio preconceito como fonte de verdade. Ficámos agora a saber que trabalhar intoxicado, pelo menos com álcool (seria idêntica a decisão se a substância fosse, por exemplo, haxixe?), é, para três juízes da Relação, um direito inalienável caso as normas empresariais não o impeçam expressamente. Eis algo que explica muita coisa - e que nos leva a propor que se coloque, nas regras da judicatura e, já agora, nos juramentos dos governantes, qualquer coisinha sobre limites de alcoolemia. Ou então decrete-se, para o resto de nós, e com carácter de urgência, a interdição da sobriedade.

Sem comentários:

Enviar um comentário